Diretora do documentário dos Racionais MC’s, Juliana Vicente fala sobre negritude e a trajetória no audiovisual

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A cineasta, diretora, produtora e roteirista Juliana Vicente já dirigiu uma série de projetos com sua produtora, Preta Portê Filmes, como o filme “Diálogos com Ruth de Souza”, o documentário “As Minas Do Rap”, a série “Afronta” e mais recentemente, o documentário “Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo”. 

Mas antes de começar a trabalhar com o audiovisual, a primeira paixão de Juliana foi o teatro, onde ficou durante um tempo. No período de entrar para a faculdade, a jovem paulista saiu do interior do estado e foi para a capital, ainda indecisa sobre qual curso prestar. Depois de pensar em administração pública e até em jornalismo, foi o cinema que apareceu como uma possibilidade de “comunicar com muita gente e promover transformação”, segundo Juliana. 

Juliana Vicente durante a gravação do documentário “Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo” /Foto: Divulgação – Neflix

“E cinema juntava a possibilidade de pesquisar os assuntos que eu queria, mas colocar o meu ponto de vista muito claramente, que era o papel da direção e do roteiro. No final das contas eu fiz duas faculdades ao mesmo tempo: fiz cinema e letras na USP”, conta Juliana. 

E foi durante o primeiro estágio na faculdade, sendo a única pessoa negra no ambiente e ter sido humilhada publicamente, que a diretora decidiu criar sua própria produtora. 

“Para mim ficou muito claro que não importava o quão boa ou dedicada eu fosse. Eu era a primeira a chegar e a última a ir embora, mas mesmo assim eu percebi que aquilo não seria o suficiente. Que o espaço que eu queria de poder falar e construir minhas narrativas, não ia chegar a partir do meu esforço naquele ambiente. Isso ficou muito claro para mim”, explica.

Depois do episódio, Juliana chegou a trabalhar em outras produtoras até ter a oportunidade de assumir a produção de um projeto por conta própria. E assim nasceu a Preta Portê Filmes que, de acordo com a cineasta, é onde ela pode falar sobre a comunidade negra e suas pautas, assim como a comunidade indígena, LGBTQIAP+ e de gênero. 

Juliana afirma que falar sobre essas temáticas, de início, não foi intencional. A diretora e roteirista conta que, antes de tudo, ter escolhido falar sobre suas histórias e vivências, que atravessam essas questões. 

“O meu primeiro filme é a história de uma menininha negra que queria ser paquita. Era um pouco da minha história ali, então automaticamente essas coisas vinham. O meu primeiro curta fala sobre umbanda…então não tinha um pensamento político de ‘ah, estou falando sobre algo que rompe barreiras’. Com o tempo que fui entendo que lugar isso ocupava”, explica. 

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Mas Juliana conta que não teve tempo para “se descobrir negra”. Retomando as lembranças da infância, a cineasta conta que, por ter estudado em um colégio em que a maior parte das pessoas eram brancas, ela descobriu, da pior forma, o que significa ser uma pessoa negra.

“Meu pai sempre chamou a gente de ‘nega’, eu chamo minha mãe de ‘preta’, mas aquele sempre foi um ambiente carinhoso. Quando eu entrei para a escola, de repente aquilo vira um xingamento. Isso deu um nó na minha cabeça”

Juliana durante a gravação do documentário – Foto: Reprodução/Netflix

Ela conta que se tornou uma criança um pouco agressiva diante as agressões que enfrentava na escola, mas com o tempo foi utilizando outras ferramentas para lidar com o racismo. Uma delas foi o audiovisual e, por meio dele, Juliana também conta que criou uma rede que a ajudou a se compreender melhor.

“Para mim, o processo de cura mais forte é o encontro. A primeira coisa que foi fundamental, em estar retratando histórias nossas, foi conseguir, a partir disso, promover encontro com pessoas negras que eu admiro, que eu gosto, que me fortalecem, que eu admiro. Eu tive um crescimento brutal, e eu não tenho a menor dúvida que a gente se fortalece estando junto”, diz a diretora, que entre os objetivos das obras que produz, está o fortalecimento das pessoas. 

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“Eu acho que a denúncia está feita, então acho que nesse momento a gente precisa se fortalecer. E agora eu tenho me desafiado a pensar sobre futuro, para pensar como que a gente vai começar a imaginar o futuro que a gente realmente quer, desejar ele”, conta Juliana, que acredita que o audiovisual contribui muito para a comunidade negra e para todo o país. 

“O audiovisual está em quase tudo. Não está restrito às salas de cinema e televisão. Tudo que a gente está produzindo nas redes é audiovisual, então eu penso de maneira expandida. Como a gente vai conseguir, através desse audiovisual transversal, fazer com que o nosso povo consiga se sentir forte o suficiente para virar essa mesa? Que foi muito o que eu pensei para o documentário dos Racionais”. 

“Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo”

O documentário, dirigido e roteirizado por Juliana Vicente, sobre um dos grupos de rap mais influentes do país começou com a produtora acompanhando os Racionais MC ‘s ao longo de alguns shows Brasil afora, fazendo gravações. Antes disso, Juliana já havia trabalhado com eles no clipe “Mil Faces de um Homem Leal – Marighella” e com o tempo a parceria só foi aumentando.

Juliana Vicente ao lado do rapper Mano Brown, no set do documentário sobre os Racionais MC’s /Foto: Divulgação – Netflix

De acordo com Juliana Vicente, a ideia começou com a proposta de ser um DVD, mas, após repensar o que criar com o material já gravado, a diretora entrevistou todos os membros do grupo para entender como os Racionais MC ‘s se tornaram esse fenômeno. Foram seis horas de entrevista. Ao final de tudo, Juliana revela que se deu conta da dimensão do grupo, e assim nasceu o documentário. 

Ao longo da produção, a diretora conta que surgiu a necessidade de buscar o material de arquivo para ajudar a contar a história. “A gente começou a pesquisa, a fazer uma timeline com tudo que estava acontecendo no Brasil e no mundo enquanto estava nascendo os Racionais. Quando eu chamei os caras para ver o filme, eu dei o play já era filme. Já viram tudo pronto. A primeira versão de duas horas”, conta Juliana, que já trabalha com o grupo há 10 anos.  

Durante a gravação do clipe Marighella – Foto: Reprodução/Twitter

Até então, a cineasta conta que o trabalho estava sendo produzido com poucos recursos da produtora, e quando a Netflix entrou como parceira, em 2020 – 5 anos após o início do trabalho -, ela pôde fazer a versão final que está disponível hoje. “Eu entrevistei eles de novo e filmei mais coisas que eu queria filmar, mas que não podia antes”, conta com detalhes. 

Apesar dos poucos recursos financeiros do começo, Juliana afirma que não poderia desistir. “Eu entendi que o filme tinha essa potência de conversar com a nossa gente. Então, a gente precisa se debruçar para fazer o filme gerar essa conversa!”. Mas a produtora destaca que um dos desafios da produção foram as imagens de arquivos.

De acordo com a diretora, o grupo Racionais possui um acervo próprio bastante rico, mas ainda era necessário usar um material de contexto que precisava ser comprado, difícil de ser acessado. 

“A única forma da gente contar a nossa história é contar com o acervo dos outros, porque infelizmente os nossos raramente tinham câmeras. Então, quando a gente limita o acesso à nossa história, pois ela foi filmada por outras pessoas, isso impede que a gente conte nossa história em detalhes”, explica Juliana, que reforça a importância da comunidade negra ter controle sobre a narrativa.

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“Daqui pra frente, a gente precisa gerar essa cultura de se registrar, de se inscrever na história, assinar nossos trabalhos e falar nossos nomes abertamente”, afirma Juliana, que hoje trabalha com uma equipe composta, em sua maior parte, por profissionais negros que facilitam o entrosamento por trás das câmeras. 

O resultado foi o sucesso que o documentário “Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo” alcançou: Top 10 Global da Netflix. Juliana Vicente confessa que não esperava esse alcance, mas está muito feliz.

“Eu estou muito feliz, porque eu acho que é o que os Racionais merecem e a gente trabalhou para abrir essa conversa. É uma quantidade de pessoas que a gente nem imagina se interessando e assistindo o trabalho”

Mas, para além desse alcance, Juliana admite que o mais importante foi a discussão que o documentário – que fala sobre violência policial, vida nas comunidades e outros – gerou.

“A gente lançou o filme entre uma eleição e uma copa, e podia ter sido suplantado por essas discussões, mas ele conseguiu ter vida e aparecer, e as pessoas falarem sobre as questões que a gente considera importante”. 

Bárbara Souza

Bárbara Souza

Carioca da gema, criada em uma cidade litorânea do interior do estado, retornou à capital para concluir a graduação. Formada em Jornalismo em 2021, possui experiência em jornalismo digital, escrita e redes sociais e dança nas horas vagas. Se empenha na construção de uma comunicação preta e antirracista.

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