Empreendedorismo negro e feminino resiste através da história

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O que as quituteiras do século XIX e as baianas do acarajé de hoje podem ensinar sobre empreendedorismo, inovação e resiliência

A história do Brasil pode ser contada de diversas formas. No entanto, o que se aprende na escola deixa à margem personagens importantes para a construção da cultura, da memória e da riqueza nacional. Este processo pode ser chamado de “apagamento”, e é compreendido por especialistas como uma das formas de perpetuação do racismo. A solução, então, seria contar a história sob outros olhares, resgatando vozes invisibilizadas no tempo. Quando se fala em empreendedorismo negro, um ótimo exemplo são as baianas de acarajé. Quem vê essas mulheres com seu tabuleiro nas ruas das cidades não imagina que esta atividade remonta ao protagonismo e ao pioneirismo das mulheres negras quituteiras do século XIX.

Mulheres negras são 52% do total de empreendedores negros no Brasil

Donas do seu próprio negócio, essas mulheres fazem a roda da economia girar desde o período do Brasil Colônia, quando ainda eram escravizadas. Atualmente, elas estão inseridas no grupo de empreendedores negros que movimentam R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil, segundo o estudo “Empreendedorismo negro no Brasil”, feito pela aceleradora de empresários negros PretaHub, da Feira Preta, em parceria com a Plano CDE e o JP Morgan. Pretos e pardos são mais da metade dos empreendedores do país – cerca de 51% dos brasileiros que tocam algum tipo de negócio. Destes, 52% são mulheres.

A administradora de empresas, CEO da Barkus educação financeira e especialista em História e Cultura Africanas e Afrobrasileiras, Bia Santos, explica que o protagonismo feminino no empreendedorismo negro tem raízes históricas.

“Em África, principalmente na região da Costa da Mina, as mulheres eram mais voltadas para o comércio, para a negociação. Quando são trazidos para o Brasil, eles reproduzem quase a mesma lógica. No século XIX haviam muitos ‘escravos de ganho’ ou ganhadeiros, que tinham um dono, mas também uma certa autonomia para circular nas ruas e exercer atividades que trouxessem alguma renda. Muitos nem moravam com seus senhores. As mulheres se destacavam mais porque sabiam negociar, vender, trocar, como no caso das quituteiras e das quitandeiras”, explica.

Bia conta que as escravizadas ganhadeiras chegaram a ser o segundo grupo social mais influente em algumas regiões do Brasil. “Além de saber negociar, essas mulheres eram muito bem relacionadas, conheciam as pessoas influentes, sabiam os movimentos do mercado e souberam reverter isso para seus negócios. Muitas foram muito bem sucedidas, fazendo fortuna, comprando a alforria de outros escravizados. Mulheres como Joanna Prates, em Santa Catarina, Ana Teixeira Guimarães, em Minas Gerais, e Zeferina, rainha do Quilombo do Urubu em Salvador”, conta.

Bia Santos, CEO da Barkus educação financeira

Os escravizados ganhadeiros eram uma espécie de ativo financeiro dos senhores de escravo da época. Pesquisas mostram que muito antes da abertura da Bolsa de Valores brasileira, homens branco já viviam de renda passiva, no caso, os negros. Eles possuíam alguns escravos de ganho e recebiam o pagamento do jornal, uma espécie de aluguel pago pelos negros. Para Bia Santos, esta história tem estreita relação com as dificuldades enfrentadas pelo povo negro na hora de empreender.

“Historicamente, nós negros nunca estivemos no lugar de quem detém o ativo, nós éramos o ativo. É por isso também que temos mais dificuldade de aceso à educação financeira, e nos endividamos mais. Pessoas negras empreendem mais por necessidade do que por oportunidade e as dificuldades para acessar crédito e para regularizar um negócio seguem sendo os maiores entraves. Mas, apesar disso, nós resistimos”, finaliza a CEO da Barkus, cujo propósito é tornar a educação financeira acessível para todas as pessoas.

Rosa Perdigão, CEO cheirinho de dendê e Coordenadora geral ABAM/RJ I Foto: Arquivo pessoal

Rosa Perdigão, CEO da Cheirinho de Dendê e Coordenadora estadual da ABAM/RJ – Associação Nacional das Baianas de Acarajé – afirma que a maioria das associadas não tinha nem mesmo cadastrado como Micro Empreendedor Individual (MEI), e que a situação mudou quando a associação resolveu investir em conhecimento.

“Muitas das nossas baianas são idosas, mulheres que tem mais de 30 anos de tabuleiro de acarajé, e a vida toda elas vendiam hoje para comprar os produtos de amanhã, ou seja, não tinham noção de planejamento, compra coletiva, reserva de emergência, estoque, precificação. Elas não tinham sequer cadastro no MEI, havia muita desinformação até promovermos uma série de cursos, entre eles, em parceria com o Sebrae”, conta.

Associadas da Abam fazem curso de captação na Agência Besouro I Foto: Mário grave

Além de essencial para a economia local, o ofício das baianas de acarajé é registrado como patrimônio cultural imaterial do Brasil desde 2005 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Só no estado do Rio de Janeiro, cerca de 100 mulheres são associadas à ABAM, atuando em diversos pontos da capital e outros municípios. Durante a Pandemia elas enfrentaram um dos momentos mais difíceis da associação, mas com união conseguiram se reinventar.

“A Pandemia foi um momento de reinvenção para nossas baianas de acarajé. Como não podíamos estar com nosso tabuleiro na rua, encaramos o desafio de vender por aplicativos e entregar por delivery. Eu comecei e depois outras baianas aderiram. Também nos unimos muito, nós criamos uma rede para suprir as necessidades umas das outras. Quando faltava um azeite de dendê ou quando o fornecedor do feijão ou do camarão falhava, nós fornecíamos entre nos. Hoje temos 90% da associação no delivery, até as mais velhas”, explica.

Mesmo não aparecendo nos livros escolares ou na literatura clássica das escolas de gestão e negócios, é preciso destacar que, além da resistência, inovação e inteligência dos empreendedores negros, o senso de coletividade e responsabilidade com a comunidade sempre esteve no DNA do afroempreendedorismo. Talvez seja esse o ingrediente principal para resistir e prosperar num sistema violento e racista.

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