No início deste mês, a morte da jovem grávida, de 14 semanas, Kathlen Romeu, baleada e morta durante operação policial no Lins de Vasconcelos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, comoveu as redes sociais. A jovem estava indo visitar a casa da avó quando foi atingida por um tiro de fuzil no tórax. E Kathlen não foi a única, em um período de dez dias, durante a pandemia, a polícia do Rio de Janeiro matou 13 pessoas em uma operação no Complexo do Alemão.
“João Victor Gomes da Rocha, de 19 anos, na Cidade de Deus; Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, no Morro da Providência; e Iago Cesar, de 21 anos, em Acari. Além do menino João Pedro”.
Em dezembro do ano passado, a Rede de Observatórios de Segurança lançou o estudo “A Cor da Violência Policial: A Bala Não Erra o Alvo”, que apresenta dados a respeito da violência policial nos estados da Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. A pesquisa apontou que, em 2019, o Rio de Janeiro teve 1.423 mortes de pessoas negras por policiais, assim como dos 51,7% da população negra do Estado, 86% foram mortos pela polícia.
A pesquisa também mostra que o Estado da Bahia, em que 76,5% das pessoas são negras, quase 97% (474) das mortes são de pessoas negras e decorrentes da intervenção policial. No Ceará os dados são semelhantes, de 66,9% da população negra, 87% das mortes são advindas de intervenção policial.
Em entrevista ao Notícia Preta, Juliana Silva, cientista política e jornalista especialista em cultura afrobrasileira e comunicação digital; conselheira no Conselho Distrital de Igualdade Racial (CODIPIR-DF), secretária de povos de matrizes africanas da Negritude Socialista Brasileira do DF(NSB-DF/PSB-DF) e editora do blog Brasilidade Negra; conta que o foco da polícia militar é matar corpos pretos e periféricos.
De acordo com dados divulgados pelo Mapa da Violência, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. “O Estado brasileiro ainda é racista, a sociedade Brasileira ainda é racista”, diz Juliana.
“Isso é muito nítido quando vemos a diferença de tratamento no ‘combate às drogas’; nos bairros de alta classe com pessoas brancas não há violência, há abordagem; mas nas periferias a polícia entra atirando. Sem pensar em quem a bala acerta porque na periferia a maioria é negra e pobre, então para eles não importa. Quando dizem que a polícia militar tem que acabar é porque ela está estruturada na matança de pessoas pretas. E para mudar isso precisa cortar na raiz”, diz ela. Outro caso da brutalidade policial, foi a chacina de Jacarezinho, que aconteceu em maio deste ano na favela de Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, e deixou 28 mortos.
Necropolítica
Necropolítica é a expressão máxima da soberania, ou seja, é o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. O termo necropolítica surgiu com o filósofo camaronês Achille Mbembe. “estado de terror e uma expressão forte de morte. A necropolítica é a verdadeira política de morte do povo preto, com aval e legitimação do Estado”, afirma Gilberto Silva em entrevista ao Notícia Preta.
Gilberto Silva Pereira é advogado, professor, historiador, Conselheiro Seccional da OAB/MG, Presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/MG, Pres. da Comissão Nacional de Igualdade Racial da Abracrim/MG e Vice Presidente do Conselho de Promoção da Igualdade Racial do Município de Belo Horizonte/MG
“Sobre necropolítica é importante dizer que a mesma está relacionada com o racismo. Nada mais é do que políticas e ações estatais de morte de um determinado grupo da sociedade, com uso legítimo de força, extermínio e uma política de divisão no sentido de formar uma inimizade entre as pessoas e o Estado”, continua Gilberto.
Segundo Juliana, com uma sociedade construída no sistema escravagista, o pós abolição não criou medidas de nivelamento social, pelo contrário, criaram-se leis para segregar. “Um exemplo é a lei da vadiagem que causou o encarceramento negro. A política do embranquecimento na tentativa de apagar a cor e a cultura negra. Marginalizou o povo negro e hoje nos executa sob o argumento de sermos suspeitos”.
A necropolítica brasileira é pautada no racismo na intenção de acabar com a negritude, diz Juliana. “A necropolítica no Brasil vem através da força militar que criminaliza e extermina pessoas pretas e periféricas. As condutas dos agentes de segurança pública são agressivas, eivadas de violências, violações de direitos e morte. Neste contexto é fácil perceber que balas perdidas só atingem corpos pretos, e a justificativa sempre é que elas vem dos bandidos. Todavia, o que vemos são disparos feitos por policiais, invasões às casas sem mandado e ou ordem judicial, abordagens truculentas, dentre outras atrocidades com a população preta. E o pior de tudo é a impunidade que impera para estes agentes”, completa Gilberto.
Articulação e abordagens do Estado
“Pessoas pretas são tratadas como suspeitas e, como descreve Pierre Bourdieu em sua teoria da violência simbólica, por serem corpos pretos são considerados sem valor. Isso está entranhado na estrutura, não só da polícia, mas da sociedade. Essa violência contra pessoas negras desde a escravização reverbera na polícia de forma violenta e repressiva porque ela é a força repressiva do estado e detentor da legitimação da violência, como descreve Max Weber em seu livro Ciência e Política”, diz Juliana Silva.
Quando o policial adentra favelas e bairros periféricos, passa a ter comportamentos que não ousaria repetir em outras áreas. A conduta policial está diretamente ligada ao CEP. Com os pobres, os agentes gritam, ameaçam, usam palavrões, desrespeitam mulheres, crianças, idosos e animais. Colocam em marcha um repertório de violências físicas e simbólicas. As interações entre policiais e população são marcadas principalmente pelas atitudes desrespeitosas, diz a Rede de Observatórios de Segurança.
Gilberto afirma que é importante frisar a falta de preparo de muitos policiais que estão nas ruas, assim como a sensação de impunidade, fazendo com que os agentes cometam atrocidades e mortes na certeza de que nada acontecerá. “Terceiro, vem do momento político em que vivemos, onde os discursos de ódio vêm sendo propagados a todo momento, principalmente pelo líder máximo do estado brasileiro. Por fim, tem a questão da criminalização do povo preto, o racismo estrutural e institucional”, diz ele.
“A Polícia Militar tem um treinamento de guerra, então, se estabelece que eles precisam combater o inimigo e quem é? É esse marginal que acaba tendo cor, que acaba tendo uma região periférica específica, que acaba sendo pobre. Então, nós temos alvos muito específicos nessas abordagens, justamente, em razão dessa nossa estrutura, que é muito racista. E a nossa sociedade, que é totalmente racializada, impõe às pessoas negras o maior índice de abordagens tendo nessas pessoas inimigas e não sujeito de direito, já que eles são coisas sem humanidade”, diz Priscila Pâmela, advogada e presidenta da Comissão de Polícia Criminal e Penitenciária da OAB em São Paulo, em entrevista ao Data Labe.
“O estado sempre articula e forja para matar pessoas pretas como um processo atual de branqueamento da população brasileira. Seja através das mortes ou do encarceramento em massa do jovens negros.”
Gilberto completa dizendo que as articulações do Estado para matar corpos pretos e periféricos são diversas, e passam sempre pela criminalização do povo preto. “A justificativa sempre vem da afirmação de que as pessoas periféricas são perigosas pois vivem em meio ao tráfico e demais crimes. Todavia é importante ressaltar que essas são concepções advindas do racismo estrutural e de conceitos de pensadores que sustentaram o fenótipo de pessoas pretas como periculosas”, afirma ele.
Um levantamento realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), em parceria com o Data Labe e o laboratório de informações e narrativas do Complexo da Maré, mostra que, em 85% dos casos de abordagens violentas da Polícia Militar no Rio de Janeiro, as vítimas eram negras.
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“Não existem justificativas para tais brutalidades. É algo surreal o que acontece no estado brasileiro em relação a necropolítica e genocídio da população preta. A única coisa que posso pensar é em um estado querendo oprimir, matar e fazer um tipo de escravidão moderna, só que ao invés de chibatas, atiram para matar o povo preto”, diz Gilberto.
O estudo “A Cor da Violência Policial: A Bala Não Erra o Alvo” também apresenta a omissão de dados como racismo. No estado do Ceará, 77,2% das vítimas de violência policial letal não têm cor declarada. Já na Bahia, quase 25% das vítimas não têm a sua cor preenchida no banco de dados. “Ignora-se esta que é uma das informações mais importantes para se compreender o quanto a violência policial é focada em determinados perfis já bem conhecidos”, diz o estudo.
“balas perdidas só atingem corpos pretos”
Para Gilberto, a morte de Kathlen representou a certeza de que a cada dia o estado confirma a sua condição de agente ativo do genocídio da população preta. “Confirmou pra mim, que nós, pessoas pretas somos o alvo sempre e que não existe bala perdida e sim balas encontradas em corpos pretos”. Já para Juliana, a morte da jovem foi dolorosa para ela enquanto mulher negra, militante e mãe. “É enxergar que nossa existência não tem valor para o Estado, para a polícia e para a sociedade. Eu me vi na Kathlen. Sou mulher preta e de periferia. Podia ser eu ali”.