Cria da Vila São José, região noroeste de Belo Horizonte, a cantora e compositora Ruby, nome artístico de Camila Gomes, 26 anos, relembra a infância capital mineira e ressalta que, durante muito tempo, se viu na pele de outra pessoa, desejando não ser negra. “Eu tinha pouquíssimas referências, os poucos momentos que assistia televisão, só via pessoas brancas, eu não me enxergava. Lembro que, quando eu era bem pequenininha, já orei, pedindo a Deus para ser branca, com cabelo liso, olho verde”, lamenta.
Ela conta também que, em determinada fase da vida, relaxou o cabelo por não se ver em diversos lugares, mas, aos 18 anos, se descobriu como mulher e como pessoa negra. “Descobri tudo sozinha, da minha forma e a partir dos meus olhos. Eu queria entender o mundo fora do universo da igreja e da família. Foi quando tive oportunidade de conhecer outros lugares com meu ex-namorado. Quando terminei meu relacionamento, passei por um choque de realidade e, de certa forma, me revoltei com tudo e queria mudar, queria saber quem era eu. Foi quando resolvi deixar meu cabelo natural”, afirma.
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Ruby lembra ainda que, no começo da transição, o cabelo não ficou do jeito que ela imaginou, mas, através de pesquisas, descobriu alternativas para diminuir a frustração inicial da transição. “No começo, eu usei muito turbante que me ajudou muito, principalmente em relação à autoestima, eu fazia amarrações diferentes e mudava cores. Eu estimulava outras meninas a passarem pela transição. A Camila nunca imaginaria que ela se transformaria em uma mulher forte. Tenho orgulho de ser quem sou atualmente”, comemora.
Tecnologia e informação
Um levantamento realizado pela Comscore, consultoria especializada em mídias sociais, revelou que o Brasil liderou, em 2021, o número de acessos e percentuais nas redes sociais em toda América Latina. Os dados do estudo mostram que os conteúdos das redes sociais atingem 97,3% dos internautas brasileiros.
Ruby ressalta que as redes sociais auxiliaram na aceitação de cabelos naturais, até porque as mídias tradicionais não trazem essa discussão diariamente. “Se a gente fosse depender das mídias para falar sobre isso, ainda estaríamos com esse déficit de representatividade. Ela [representatividade] não é real. Somos mais de 54% da população e ainda não nos vemos em diversos espaços midiáticos”, cobra.
A artista completa enfatizando que as mulheres negras saíram da ditadura da chapinha para a ditadura do cacho perfeito. “Falo isso porque uso meu cabelo finalizado, com creme, fitagem, então ele fica mais definido, mas meu cabelo sem creme, ele é muito diferente, a textura é diferente. Sinto que as meninas que têm o cabelo com a textura do meu, sem creme, têm essa obrigação de chegar nesse cacho, no volume ideal. A gente não aceita o cabelo natural ainda. Meninas com cabelo crespo sofrem com isso. Elas querem aquele cacho da TV”, pontua.
Ocupar espaços
Ruby relata que frequenta alguns lugares que a música proporciona, mas que a condição social dela, não permite. “No Brasil não existiu uma segregação como nos Estados Unidos, que separavam escolas, ônibus, mas existe, até hoje, uma segregação menos objetiva, que é sentida no olhar, do ‘eu te aceito, mas só até aqui’, numa perseguição de quando você entra em um lugar e o segurança vai atrás de você. É chegar em determinado lugar e você ser o único preto ali. Então, isso ainda é muito latente”, comenta.
Para Ruby, a interseccionalidade faz parte da vida da mulher negra, desde as questões sociais, até em relação à remuneração, que sempre é menor que a dos homens e mulheres brancas. “Estamos muito longe de conseguir uma igualdade plena e que a gente consiga olhar um para o outro de uma forma, realmente, acolhedora e sem julgamentos. Estamos no caminho certo, porque, cada vez mais, têm mulheres ocupando melhores espaços, que têm falado sobre isso, que tem chamado isso através do debate, das músicas. Eu usei minha arte para trazer uma questão pessoal, mas que atinge milhares de mulheres pretas no Brasil”, reforça, falando sobre a música “Uh la la”, lançada no início deste ano, que fala sobre transição capilar, autoestima e empoderamento da mulher negra.
Ruby e Camila
A artista também lembra de alguns traumas que a Camila teve, há 15 anos, mas a verdade de cada um é o mais importante para dar saltos na vida, pessoal e profissional. “Não existe nada mais bonito que a nossa verdade. Abraçar sua história, sua naturalidade, suas dores e prazeres e entender que tudo é um processo. Não importa de onde você saiu, o que importa é a sua vontade e o que faz para alcançar o que acredita. Isso que vai fazer diferença”, finaliza.
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