Adriana Sant`Anna, empresária brasileira que mora com a família nos Estados Unidos, repercutiu, em junho passado, um vídeo no Instagram pedindo ajuda, para encontrar uma pessoa que “faça tudo” em sua casa. No vídeo, ela diz que só precisa de alguém que limpe, lave, passe, guarde, cozinhe e olhe as crianças quando ela precisar. Adriana ainda afirmou que no Brasil ela estaria “feita”, mas onde está, para cada trabalho, passar ou lavar roupa, por exemplo, se cobra 25 dólares por hora.
No mesmo período, o Notícia Preta reportou um fato similar. Um anúncio de emprego para uma governanta, em Campinas, com requisitos similares e mais alguns outros detalhes pitorescos e discriminatórios como ter bagagem cultural e estar imunizada pela Pfizer.
O que estes 2 casos recentes falam da formação do Estado Brasileiro? Para começar, eles apontam para uma linha contínua no tempo jamais interrompida estruturalmente. Basta ver, por exemplo, os anúncios que remontam ao século XIX. Anúncios de aluguel e venda de pessoas negras para o cuidado com crianças e outros serviços domésticos.
O trabalho doméstico é uma das ocupações mais antigas e importantes do Brasil, e está comumente vinculado à história da escravidão e às dinâmicas raciais que se estabeleceram no pós-alforria, a partir de 1888. Desde 1888, então, para que a classe dominante mantivesse a hierarquia decorrente daqueles regimes, foi necessário encontrar uma solução no novo cenário, e esta solução foi justamente a racialização das relações, sobretudo porque, de qualquer forma, mesmo após a abolição, mulheres e homens negros continuaram sendo escravos informais.
Uma vez que o trabalho formal era potencialmente um modo de ascensão, os negros acabavam por ser enviados ou mantidos em postos inferiores e subalternizados. Sem acesso ao emprego formal eram impedidos de prosperar economicamente e ascender socialmente. Seja através da menção à cor da pele nos anúncios da época ou ao mais atual `boa aparência`, o objetivo segue sendo o de excluir o negro de oportunidades de crescimento profissional.
À propósito, o movimento das trabalhadoras domésticas no Brasil tem mais de 80 anos, e é Laudelina de Campos Melo quem funda a primeira organização da categoria em 1936. A maioria destes profissionais já era composta de mulheres negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda. Em 2018, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) declarou que mais de 6 milhões de brasileiros trabalham em serviços domésticos, especificadamente como mensalistas, diaristas, babás, cuidadoras, governantas, jardineiros ou quaisquer outros profissionais contratados para cuidar dos domicílios e da família de seus empregadores.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta para os seguintes condições de trabalho desta categoria: Apenas 42% destas(es) trabalhadoras(es) contribuem para a previdência social e só 32% possuem carteira de trabalho assinada; apenas 4% da categoria de trabalhadoras domésticas e trabalhadores domésticos é sindicalizada; Em 2015, 88,7% das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) entre 10 e 17 anos no Brasil eram meninas e 71% eram negras(os).
Houve alguns marcos de aquisição de direitos trabalhistas, notadamente em 1972 e 1988, mas somente quase 125 anos depois do fim da escravidão, houve a aprovação da chamada ‘PEC das Domésticas’ que estendeu à categoria direitos básicos como salário mínimo fixado em lei, décimo terceiro salário igual à remuneração integral, jornada diária de 8 horas diárias ou 44 horas semanais, repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos, férias anuais, licença-maternidade de 120 dias, aviso prévio de, no mínimo, 30 dias, aposentadoria, proibição de diferença de salários e atividades ou critérios de admissão, por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e outros.
Na prática, sobretudo com a pandemia da Covid-19, a despeito de sua importância e dos avanços, o trabalho doméstico ainda se caracteriza pela desvalorização e baixa regulamentação. Como afirmou a Defensora Pública do Estado de São Paulo, Isadora Brandão, “apesar de essencial à sustentabilidade da vida humana, o real estatuto do trabalho doméstico e as mulheres que o realizam permanecem invisíveis.”