O mês de outubro pode ter acabado, mas os riscos da doença continuam existindo. Todo ano, nesta mesma época, uma série de ações são desenvolvidas para conscientizar as pessoas quanto à doença. Mas agora que o Novembro Negro começou, um novo questionamento pode ser despertado: e as mulheres negras?
Segundo dados da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, de 2017, 67% das pessoas que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS) são negras. Sendo assim, dependem do sistema público de saúde para viabilizar o tratamento. Com a queda constante da verba destinada ao SUS, a Dra. Thatiane Silva Awo Yaa, que trabalha com Medicina Ancestral , afirma que isso se reflete diretamente no serviço prestado, usando um caso como exemplo.
“Em 2013 eu tive uma paciente, uma mulher negra de 60 e poucos anos de idade, que estava com um câncer de mama já em estágio um pouco avançado, e estava fazendo quimioterapia para redução do tumor para uma possível abordagem cirúrgica posterior. Ela fazia a quimioterapia certinha e o tumor estava reduzindo. Mas um dia ela chegou no hospital para fazer a quimioterapia e não tinha o medicamento. Ela ficou umas quatro semanas sem a medicação, e o câncer se tornou mais agressivo, cresceu e não tinha mais como fazer a cirurgia, e ainda por cima ele deu metástase”.
E isso gera consequências. Uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG, de 2020, mostrou que mulheres negras tem 10% menos chances de sobreviver ao câncer de mama. No estudo, tanto a falta de acesso ao tratamento quanto a falta de acesso ao diagnóstico precoce é um dos motivos indicados. Para a Dra. Thatiane, o racismo é um grande determinante neste cenário.
“A raiz de parte dos problemas que afeta mais a saúde da população negra tem haver muito mais com o racismo. Sabemos que existe o racismo estrutural, institucional e interpessoal, e ele afeta as pessoas pretas independente da condição sócio-econômica que ela tenha. Logicamente que a desigualdade social é um agravante negativo na saúde das pessoas negras, porém a questão racial chega primeiro”.
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Recentemente uma matéria do Estadão afirmou que o atual governo reduziu em 45% a verba destinada à prevenção e controle do câncer para 2023. De acordo com a Dra. Thatiane, qualquer desfalque no investimento na saúde afeta diretamente as pessoas mais vulneráveis, como no caso de mulheres negras, que acabam tendo o diagnóstico tardio, o que aumenta as chances de haver metástase e também aumenta as chances da paciente ir a óbito.
Para a doutora, os cortes significam contribuir negativamente para o aumento da estatística da epidemiologia que em suas palavras “ceifa vidas negras” por mortes totalmente preveníveis e evitáveis.
“A gente precisa de parcimônia de um governo comprometido com o investimento necessário, para que possamos sanar as questões mais importantes em saúde para população em geral, e falando de SUS a gente sabe que estamos falando diretamente em saúde da população negra”, explica.
Um outro estudo, realizado pela Unicamp, revelou que as taxas de mortalidade para 100 mil mulheres em 2000 em São Paulo foram de 17,1 nas brancas e 7,4 nas negras. Em 2017, as taxas foram de 16,5 e 9,6, respectivamente. Ou seja, a taxa de mortalidade de mulheres negras aumentou enquanto que a de mulheres brancas, diminuiu.
A doutora acredita que apesar da mortalidade entre mulheres brancas ser maior com relação ao câncer de mama, os dados indicados tem relação com o diagnóstico previamente realizado por elas, e o subdiagnóstico que acomete mulheres negras.
“Para além disso, o aumento entre a população negra foi maior pois acredito que está diretamente relacionado às políticas de promoção em saúde e prevenção de doenças, como no caso da prevenção primária que inclui alimentação, exercício físico, dieta equilibrada e prevenção secundária, que inclui fazer exames de rastreamento, como por exemplo a mamografia”, conclui a Dra. Thatiane.
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Questionada se é possível reverter este cenário, a Dra. Thatiane Silva afirma que “não só acredito como trabalho para isso”, e uma das suas reivindicações para que a mudança seja feita é modificar a forma com que tanto a sociedade no geral quantos os próprios profissionais de saúde, principalmente os médicos, enxerguem as pautas em torno da saúde da população negra.
“A maioria das pessoas que estão na medicina não são negras, e desconhecem o tema ‘saúde da população negra’, seja por que não se interessam, ou por que não tem realmente essa disciplina sendo estruturada no seus estudos acadêmicos”, explica a doutora que acredita que uma das formas de tornar este tema relevante, é levá-lo para as universidades da área da saúde.
“Que tenham aulas sobre a política nacional de saúde integrada da população negra; que tenham contato e compreendam de fato as especificidades em saúde da população negra para que dessa forma a equidade seja aplicada as estatísticas sejam modificadas positivamente”.
Para finalizar, enquanto mulher negra e médica, a Dra. Thatiane Silva assegura que educação e saúde são de extrema importância, mas não andam sozinhas. A médica ressalta a importância de existirem outras políticas públicas que permitam maior acesso da população negra aos bens de consumo, por exemplo, a um trabalho de qualidade, ao lazer e ao repouso, e compreender a necessidade do autocuidado para a saúde, e acesso a trabalhos que permitam que a pessoa tenha tempo e condições financeiras para praticar exercícios físicos e ter uma alimentação adequada.
“Que a população negra possa ter acesso a promoção em saúde, para além da prevenção, possa ter acesso aos meios de promoção de saúde e para isso a gente precisa de uma reestruturação social muito grande”, expõe, e depois completa falando das suas expectativas.
“Enquanto mulher negra e médica, eu espero que a minha população possa ter acesso ao conhecimento de como ser saudável, de como se manter estável e que isso possa também prevenir o aparecimento de outras doenças, que saiba que o exercício físico regular e uma dieta equilibrada associados são extremamente importantes para evitar doenças como a diabetes, a obesidade, que inclusive é um fator de risco para o câncer de mama e para várias outras doenças”.
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