Por Jorge Santana
historiador, pesquisador e documentarista
O escritor lusitano José Saramago tem um romance famoso e polêmico intitulado “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. A obra traz um Jesus com qualidades e defeitos, humanizado, o filho de Deus com medo, raiva e errante. Queria chamar atenção para um pequeno trecho do livro, o famoso milagre da ressuscitação de Lázaro. No momento em que Jesus se prepara para ressuscitar o morto ele é impedido por Maria Magdala (Maria Madalena). Ela o interrompe com os dizeres: “Ninguém na vida tem tantos milagres que mereça morrer duas vezes”. Sensibilizado pela frase, o filho de Deus desiste do ato.
De fato, morrer duas vezes é algo muito duro para qualquer ser humano como apontou a sábia personagem de Saramago. E mais penoso seria morrer duas vezes de “morte matada”, com se diz popularmente. Pois bem, a mulher negra, mãe e soteropolitana Gildásia dos Santos (1936-2000) foi assassinada em duas ocasiões, na verdade, três. Mais conhecida com Ialorixá Gilda de Ogum, ou para os mais chegados como Mãe Gilda, faleceu em 21 de abril de 2000. Esse dia tornou-se o dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
A saudosa Mãe Gilda era uma liderança religiosa do Candomblé. Desenvolvia trabalhos sociais no bairro e também foi ativa no movimento “Fora Collor”. Em outubro de 1999, a Folha Universal publicou uma matéria racista, apócrifa e intolerante intitulada: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Na matéria do periódico nacional trazia uma foto, sem autorização, de Mãe Gilda com suas vestes religiosas em seu terreiro. Ali começou o assassinato dela.
Após a publicação da matéria, a líder religiosa sofreu com acusações, calúnias e mentiras originadas pela matéria jornalística. Sua casa foi invadida por fundamentalistas religiosos, o marido agredido, ela foi xingada e objetos sagrados quebrados. Mãe Gilda adoeceu e 3 meses após a publicação do vespertino da Igreja Universal, a Ialorixá de 65 anos sofreu um infarto fulminante que resultou em seu falecimento. A denominação neopentecostal foi condenada a pagar uma indenização de 1 milhão de Reais, porém dinheiro não ressuscita ninguém.
Essa foi a morte física da Ialorixá, porém tem uma segunda, a morte simbólica. Um busto foi construído para homenageá-la, no bairro de Itapuã. Esse monumento foi novamente atacado no início do mês de julho. Isso, enquanto uma parte dos brasileiros choravam com a derrubada de estátuas de escravistas no hemisfério Norte. O responsável pelo ato de agressão a estátua foi preso. Confessou ter cometido o ato a mando de Deus. O boletim apenas tipificou-o como crime contra o patrimônio, excluindo o crime de intolerância religiosa.
Voltando ao romancista Saramago, de fato ninguém merece morrer duas vezes. Porém, a Mãe Gilda morreu duas vezes, foi assassinada e nas duas ocasiões por adeptos de um cristianismo racista, bélico e fundamentalista. Na primeira vez, a IURD foi quem apertou o gatilho por meio do seu jornal e a segunda vez quem apertou não foi apenas o homem que vandalizou a estátua, mas todos os que veiculam na mídia as religiões afro-brasileiras como o mal no Brasil são coautores.
Mãe Gilda,Presente!
Mãe Gilda, Presente!