Intolerância e racismo religiosos matam sacerdote em Belém

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Por Bianca Levy – Matéria produzida e publicada pela Amazônia Real e divulgada com autorização

Se o convite era para um batuque ou samba de caboclo, Vinícius Gonçalves não pensava duas vezes. Com 12 anos de idade, já ouvia os sons dos atabaques no Mansu Nangetu, tradicional terreiro de candomblé bantu, localizado na capital paraense. Aos 18 anos, no Candomblé da Nação Angola, ele se tornou o sacerdote Taata Kimbelenkosi, passando a ser o responsável pelos cortes litúrgicos e também por tocar atabaques em festejos da casa. 

Vinícius Gonçalves, o Taata Kimbelenkosi, de 20 anos, foi assassinado com três tiros no último dia 20 de março; O programa da emissora regional RedeTV! expôs o caso de forma sensacionalista, tratando a vítima como criminosoReligiosos fizeram protesto contra a violência – Foto de Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

No dia 20 de março foi a última vez em que o Vinícius Gonçalves, de 20 anos, tocou um atabaque. Ele foi executado com três tiros por um homem encapuzado que saiu de um carro prata. O jovem tinha acabado de sair de um festejo em um terreiro no bairro da Cremação, na companhia de um amigo, onde participou de um samba de caboclo.

Eram por volta das 18h30, quando o sacerdote e o amigo E.W. (seu nome está em sigilo por medida de segurança), de 22 anos, voltavam para casa. Um carro prata, com vidros cobertos por película preta, já estava estacionado na rua do amigo. Ao passar pelo veículo, o assassino já partiu em direção ao jovem. “Fiquei parado. Se quisesse me matar, ele me matava. Ele deu o primeiro tiro e o Vinícius caiu. Olhei para o Vinícius e não acreditava no que estava acontecendo”, lembra E.W. Veio um segundo disparo, o que fez o amigo correr tentando achar marcas de sangue pelo corpo. Ele ainda teve tempo de ouvir um terceiro disparo.

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Sem proteção policial desde então, E.W., que também é afro-religioso, convive com o fato de ter sido testemunha ocular do crime e teme pela própria vida. “Eu estou criando forças. Não consigo sair nem para comprar um pão ali na feira”, confessa. Ele procura explicações, mas não se lembra de Vinícius ter comentado nenhuma suspeita. “Será que era por que a gente estava com roupa de candomblé e isso incomodou alguém?”, questiona.

A pergunta de E.W. ecoa entre os Povos Tradicionais de Matriz Africana (Potma) do Pará. Segundo o irmão da vítima, o também sacerdote Vitor Kalepensi, Vinícius era uma pessoa que não escondia a religiosidade. “Meu irmão é de Ogum. E, como qualquer pessoa de Ogum, ele é destemido, convicto. Ele tinha muito orgulho da tradição, andava com contas, paramentas, não se escondia e se posicionava enquanto sacerdote religioso. Até então eu desconheço qualquer ameaça que ele tenha sofrido por conta disso”, conta.  

Sete religiosos mortos 

O Pará é o 1º Estado do Norte e o 13º do Brasil com mais ocorrências de Intolerância Religiosa em 2021, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em 2019, o Povos Tradicionais de Matriz Africana (Potma) produziu um relatório sobre as Violações de Direito à Liberdade.

Vitor Kalepensi, irmão do sacerdote, toca o atabaque que o irmão costumava tocar nas cerimônias religiosas do terreiro Mansu Nangetu – Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

O levantamento apontou que nos anos de 2015 e 2016 houve sete assassinatos de sacerdotes e sacerdotisas dos Povos Tradicionais de Matriz Africana no Pará. São eles:  Mametu  Luango –  Neire  do  Socorro  Ferreira  da Fonseca (foi morta em 22/4/2015 na cidade de  Moju); Pai  Roberto  Ruan  Neves  da  Silva (05/10/2015 em Castanhal); Babalorixá  Bessen  ny  Odo – Marco  Antônio Albuquerque   da   Cruz (2/12/2015 em Belém);  Pai  José  Flávio  Ferreira  de  Andrade (17/12/2015 em Benevides); Pai  Xoroque do  Brasil – Raimundo  Nonato Ferreira (23/12/2015 em Belém);  Babalorixá   Sigbonile – José   Mário Cavalcante  da  Silva (8/8/2016 em Ananindeua);    Ivonildo  dos  Santos – Huntó  Jigongoji,o Nego  Banjo (29/9/2016 em Belém).

A Secretaria de Segurança Pública do Pará (Segup) revela que os crimes contra os religiosos aumentaram 271% entre os anos de 2020 a 2021. Veja o infográfico.

O programa Alerta Pará, da filial regional da emissora RedeTV!, divulgou o assassinato de Vinícius Gonçalves, o sacerdote Taata Kimbelenkosi, de forma sensacionalista e racista. No dia 21 de março, além de divulgarem uma foto de outra pessoa como se fosse Vinícius e expor o endereço da família da vítima, o apresentador Valter Lobato chamou a vítima de criminoso. E fez comentários como “você que escolhe viver na criminalidade, saiba, esse ditado é antigo: o crime não compensa” e “mas antes ele do que um trabalhador, do que um policial, do que um cidadão de bem em geral”

Cartazes com o rosto de Vinícius foram afixados nas paredes da sede da Rede TV Belém (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Os atos explícitos de racismo e intolerância religiosa foram respondidos com um protesto por familiares e amigos do sacerdote na frente da sede da RedeTV! Belém. “Meu irmão é um sacerdote da nossa religião, tal qual um padre para a Igreja Católica ou um pastor para a igreja evangélica. Ele era um grande Taata, exímio tocador de atabaque, educado em terreiro e com consciência de classe, raça e gênero. Com certeza, se isso tivesse acontecido com sacerdotes de outras religiões, a repercussão seria outra e tampouco eles teriam a imagem associada à criminalidade”, afirma Vitor Kalepensi.

Em nota pública, a RedeTV! afirma que o comentário do apresentador Valter Lobato foi “infeliz” e que o próprio apresentador, após a repercussão do caso, pediu desculpas à família diretamente, retratando-se também publicamente ao vivo. “Sabemos que qualquer profissional é passível de erro. Quem nunca errou uma informação? A Rede TV! Belém, através desta nota, pede mais uma vez desculpas à família do jovem Vinícius Gonçalves pelo acontecido, e teremos mais cuidado nas apurações dos fatos”, diz a nota.

A família encaminhou à RedeTV! Belém uma notificação extra oficial apontando crime de difamação contra a honra e a memória da pessoa morta e danos morais. “Depois que a matéria repercutiu, eles fizeram uma retratação, só que uma retratação debochada. Sequer falaram o nome do Vinícius e até agora não tiraram do ar a reportagem em que chamam meu irmão de criminoso. Não estamos satisfeitos com essa reparação e ela não apaga os danos que sofremos”, disse Vitor Kalepensi.    

De acordo com a Polícia Civil, a investigação do crime de difamação contra a RedeTV! Belém segue em curso na Delegacia do bairro do Guamá e sob sigilo.  

Agressões à luz do dia

Reportagens sensacionalistas e discursos de intolerância religiosa que circulam nas redes sociais têm o poder de incitar a população a praticar atos violentos. Na quarta 23 de março, um grupo foi vítima do discurso de ódio enquanto praticava ritos litúrgicos em frente ao Ilê Ifá Omi Asé Ofá Lewá, no município de Ananindeua, na região metropolitana de Belém.

O sacerdote Babá Edson Catende, babalorixá das Águas do Ketu – Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

“Estávamos em função da iniciação dos filhos da casa. Acordamos às cinco da manhã, saudamos os orixás e em seguida, como parte da ritualística, nos deslocamos para a rua, cada um com o alimento na mão para ofertar a comida na rua. Tinham vários filhos da casa incorporados em seus orixás. Quando a gente começou a oferecer a comida, sai esse senhor e começa a gritar, ‘seus cambada de demônios! Adoradores do diabo! macumbeiros!’”. Ele entrou na casa dele, pegou um balde de água suja e jogou em cima dos orixás! Eu olhei para aquilo e me senti tão mal, sabe, e eu não podia fazer nada”, relata Babá Edson Catendê, que no momento coordenava junto à filha de santo e dirigente da casa, Mara de Ewá, os fundamentos de iniciação. 

Após jogar água suja em cima dos afro-religiosos e orixás, essa pessoa entrou em casa e retornou com um facão. A cena foi registrada em vídeo e repercutiu na internet. “Eu, como Iyalorixa me sinto extremamente afetada com esse episódio que ocorreu em frente ao meu ilê. Babá Catendê é meu babalorixá há 20 anos. Estávamos no meio de um fundamento religioso que só iria ser concluído no dia seguinte e não podíamos sair de casa para fazer a ocorrência”, resume a sacerdote do Ilê Ifá Omi Asé Ofá Lewá, Mara de Ewá, complementada por Catendê: A dirigente espera as autoridades tomem providências.

Eram cerca de 16 pessoas nesse rito e o agressor não se importava de estar ferindo todo o coletivo. “Ele agrediu toda a tradição, todo um povo, toda uma população tradicional cheia de saberes das africanidades, pessoas de axé e não respeitou nem as crianças, nem as divindades que estavam presentes, Xangô, Ogum, Iansã, Iemanjá. Ele podia ter matado qualquer um e simplesmente não fizeram nada”, reforça Babá Catendê.

O caso foi registrado 48 horas depois do ocorrido na Delegacia de Combate aos Crimes Discriminatórios e Homofóbicos (DCCDH). Procurada pela reportagem da Amazônia Real, a Polícia Civil respondeu em nota que não divulga informações sobre investigações em andamento.

Racismo institucional

Esta não é a primeira vez que Babá Catendê, que é também Advogado e ex-integrante da Comissão de Igualdade Ética e Racial da Ordem dos Advogados do Brasil da seccional Pará (OAB-PA), e toda a coletividade do Potma é vítima do racismo religioso social e institucional. Um dos episódios ocorreu na Festa da Chiquita de 2019 (evento que integra a Programação extraoficial do Círio de Nazaré). os religiosos estavam na Praça da República com o ‘Acarajé da Chiquita’, uma ação realizada há mais de 20 anos, e tocavam os tambores como saudações para todas as nações, quando foram abordados pela polícia.  

A procuradora Ana Claudia Pinho, coordenadora do CAODH – Foto: Daniel Vilhena/AID/Alepa

“O Batalhão da Polícia de Choque e a Guarda Municipal nos abordaram querendo calar os nossos atabaques. Jogaram spray de pimenta na nossa cara”, relembra Babá Catendê. Em 2016, os religiosos também foram vítimas da intolerância. Durante o festejo de aniversário de Belém, o trio que prestaria homenagem à capital paraense foi impedida de seguir adiante. “Seguimos cantando a pé, saudando Oxum e os rios que banham a cidade. Foi quando os seguranças do então prefeito Zenaldo Coutinho jogaram spray de pimenta em mim e em outras lideranças religiosas presentes”.

Ainda de acordo com Catendê, ambos os casos foram encaminhados para o Ministério Público Estadual. “A gente procura os meios judiciais, registra BO (boletim de ocorrência) e parece que o inquérito não anda. A gente sofre com racismo institucional, as estruturas não querem ouvir a gente”, desabafa o advogado.  

Procurada pela reportagem, a Promotora de Justiça e Coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos no MPPA, Ana Cláudia Pinho, reconhece que as questões relativas ao combate ao racismo, à intolerância religiosa e à proteção dos povos de terreiro não foram priorizadas anteriormente, por fugir do perfil mais tradicional da atuação do MP. 

“Porém, o atual Procurador-Geral de Justiça do MPPA César Bechara Nader Mattar Júnior, sensível à situação, vem direcionando o foco para essas demandas. Há 7 meses, foi instalado o Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, o CAODH, e em 23 de novembro de 2021 foi implantado, em Santarém, o Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial, o Nierac”, explica Ana Cláudia. Os dois departamentos acompanharão essa agenda do combate ao racismo, sendo prevista a criação de um observatório de violência com atuação junto às Promotorias de Justiça. “Considerando que a prática do racismo é imprescritível, o Nierac e o CAODH estão à disposição de quem possua alguma demanda no âmbito criminal e tenha interesse em dialogar a respeito, para adoção de providências que porventura couberem”, afirma. 

Agentes de políticas públicas

“Viemos de uma terra sagrada onde o alá é quem cobre as nossas cabeças e Oxalá é o guardião da paz, mesmo assim fazem guerra e racismo com a nossa gente. Não podemos colocar um turbante ou uma saia rodada que somos taxados de macumbeiros, feiticeiros e adoradores do diabo. Em que universo estamos? Que universo é esse onde os direitos de exercer a fé nos é negado? Esta é a pergunta que não quer calar”. Assim começa o relatório produzido por Babá Edson Catendê, junto a Táta Kinamboji e Nildon Deleon. O documento foi encaminhado ao Conselho de Segurança Pública (Consep) em 2019.

O sacerdote mostra a quantidade de Boletins de Ocorrências registrados por racismo religioso e outras violações de direitos dos praticantes de cultos de matrizes africanas no Pará – Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

O relatório foi escrito pelos próprios Povos Tradicionais de Matriz Africana após a série de assassinatos de lideranças afro entre 2015 e 2016 no Pará e a divulgação em redes sociais de um vídeo de um grupo de milícia fundamentalista que se autointitula “Gladiadores do Altar”, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus. 

“Eles invadiram por volta das 11 horas da noite. Eram uns três. Invadiram atirando pra todos os lados, dizendo que tinha que respeitar a palavra de Deus, porque aquilo era uma bagunça.  Acertou dois tiros de raspão numa senhora que estava lá, pegou no pescoço e na costa. Aí outro dia foram lá e deram o veredito, que o pai de santo se mudasse ou então eles iam entrar e acabar com tudo, com casa, com terreiro, inclusive com eles. Aí pro bem maior de todos eles foram embora de lá”, descreve um depoimento de filho de santo presente no relatório. 

Após a apresentação do material, o Consep decidiu criar, por meio da resolução 352/2018/CONSEP um Comitê Permanente para a construção de um Plano Estadual de Políticas Públicas para os Povos de Matriz Africana: Combate ao Racismo Religioso no Pará – 2021 a 2024. 

Amigos e parentes protestaram pedindo justiça pela morte de Vinícius e pela punição da Rede TV Belém, no último domingo (27) – Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

O plano estadual foi elaborado por representantes dos Potma em parceria com a Secretaria de Segurança Pública, MPPA, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, Centro de Estudo e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), Defensoria Pública, OAB-PA, Ouvidoria, e Guardas Municipais de Belém e Ananindeua. Ele foi lançado em uma cerimônia no dia 20 de dezembro de 2021 no Theatro da Paz.  

Segundo informações da Assessoria de Comunicação da Segup, “o Pará será o primeiro Estado brasileiro a implantar o plano, que reúne um conjunto de políticas públicas direcionadas ao combate a crimes relacionados à intolerância religiosa e à defesa e proteção de direitos dos povos de matriz africana”.  

Para o Babalorixá Catendê, que esteve presente em todas as etapas de elaboração desse plano estadual, este é só mais um passo na extensa luta dos Povos Tradicionais de Matriz Africana: “Não aguentamos mais ser violentados, oprimidos. Nossos atabaques não vão silenciar. Seguimos em várias frentes, nos organizando para enfrentar este racismo institucional e social”, conclui o sacerdote.

Igor Rocha

Igor Rocha

Igor Rocha é jornalista, nascido e criado no Cantinho do Céu, com ampla experiência em assessoria de comunicação, produtor de conteúdo e social media.

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