Por: Angélica Ferrarez de Almeida
Doutora em História Política – UERJ e Pesquisadora do grupo de Pesquisa Multi Institucional
Na sociedade brasileira a história das instituições e de suas ideologias foi baseada no pacto colonial e logo nas condições estruturais do racismo, que projetou espaços institucionais específicas para a população negra. Uma pesquisada na história do encarceramento, sejam os presídios ou manicômios, por exemplo, revela a natureza destas instituições e a “cor padrão” da maioria dos encarcerados. Se pensarmos as instituições de ensino e memória, a presença de sujeitos brancos, tanto demograficamente quanto na produção do conhecimento, é marcante. Tendo em vista que estas instituições nascem no bojo do colonialismo a fim de garantir direitos e privilégios aos sujeitos brancos, não é de espantar que sejam estes, ainda hoje, os maiores beneficiados deste sistema.
Entretanto, os saberes produzidos pelos grupos historicamente marginalizados são lugares de potência e de reconfiguração do mundo por outros olhares. Como vivemos o esgotamento deste sistema eurocêntrico e a falência do seu modo de pensar, gerir e viver, procuramos ideias para adiar o fim do mundo, parafraseando Ailton Krenak, buscando respiro nas frestas deste sistema mundo que nos comprime e nos mata.
Neste movimento, há uma instituição nascida no ventre colonial, mas que tem sido desmobilizada e animada com outras narrativas há um tempo, são elas os museus. Refletindo a circulação internacional de ideias inovadoras no campo da museologia, há novas experiências museológicas acontecendo no mundo, em uma espécie de virada decolonial em âmbito global e que tem refletido no Brasil. Neste sentido, temos museus em espaços de favelas apontando caminhos para a descolonização através destas instituições. Temos espaços de memória em escolas de samba e acervos em casas particulares disponíveis a visitação. Só para citar alguns exemplos, temos no Rio de Janeiro, no Morro do Pavão-Pavãozinho, o Museu de Favela (MUF). Na favela da Maré há o Museu da Maré, mais antigo, e, o Maré a Céu Aberto, em construção. No Morro da Providência, há a primeira experiência de museu a céu aberto e já houve o Museu do Carnaval Tia Dodô da Portela, aliás, na Mangueira, há o Museu do Samba São Paulo, em uma estação de metrô, há o Museu da Diversidade Sexual.
Saindo do eixo sudeste temos diversas experiências, mas a que mais tem nos chamado atenção é o MAPPO, Museu Afro Brasileiro Pai Procópio do Ogunjá que está sendo construído na Casa do Mensageiro um espaço de terreio em Barra de Pojuca, município de Camaçari na Bahia. Comandado pelo babalorixá e mestre em estudos étnicos pela UFBA, Rychelmy Imbiriba, o museu traz uma ideia autêntica ao representar um “mergulho na história, estética e imagética do culto afro brasileiro”, como diz o release do museu.
A coleção em exposição no MAPPO é composta de fotografias, joias e objetos do culto, um acervo de mais de vinte peças do culto a Exu, patrono da Casa do Mensageiro, além de objetos do próprio Pai Procópio do Ogunjá. Personagem importante na configuração do candomblé no Brasil, Pai Procópio foi um dos poucos homens, pai de santo, na época em que as religiões de matriz africana no Brasil vivia o apogeu das grandes matriarcas. O ritual da feijoada de Ogum que culminou na famosa feijoada para São Jorge, feita dia 23 de abril em comemoração a este santo católico, foi criado no terreiro dele.
“Tivemos uma curadoria coletiva coordenada pela museóloga e também mãe pequena da Casa, Daisy Santos. E vamos inaugurar expondo o trabalho dos filhos da Casa, Deilton José, além dos ogãs, Arthur Seabra e Aly Miranda e do abian, Augusto Araújo. Temos muitas potencialidades aqui dentro e a ideia é contemplar a narrativa da própria comunidade de axé”, diz o babalorixá Rychelmy Imbiriba que marcou muito em sua fala a importância de aliar os estudos à vida religiosa.
Interessante como estes projetos são ações propositivas de militância profunda das próprias comunidades. Neste caso, temos um museu de requalificação, onde sujeitas e sujeitos negros na história requalificam o espaço do terreiro, da memória e dos museus. Recentemente, tivemos uma vitória para a comunidade negra com a transposição das peças sagradas do culto das religiões de matriz africana, apreendidas pela polícia para o Museu da República no Rio de Janeiro. Uma luta de 100 anos das lideranças religiosas que junto ao movimento negro encamparam a campanha “Liberte nosso Sagrado” a fim de reaver o conjunto de 523 peças coletadas como “evidência de crime” entre 1890 e 1941 pela polícia.
A transposição destas peças para o Museu da República faz parte de um movimento que se intensifica, o cuidado com os próprios espaços de memória e as narrativas contadas em primeira pessoa. Que este movimento, junto ao MAPPO e tantos outros, seja inspirador a tantas outras vozes insurgentes de grupos invisibilizados da história que gritam dos subterrâneos da desumanidade a que foram confinados, e que, neste reposicionamento do mundo, estão dizendo: “Nós somos visíveis, nós vamos participar e vamos começar (re) elaborando as instituições”.