Brasil registra aumento de conflitos no campo, aponta relatório

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O último relatório divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontou que o Brasil enfrentou um aumento significativo no número de conflitos no campo em 2023, totalizando 2.203 casos. As regiões do país que registraram o maior número de conflitos foram o Norte e o Nordeste, com 810 e 665 ocorrências, respectivamente.

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Em seguida, destacam-se o Centro-Oeste, com 353 casos, o Sudeste, com 207, e o Sul, com 168. De acordo com Ronilson Costa, coordenador nacional da CPT, os números de conflitos em 2023 superam os registros de 2020, que era considerado o maior da série histórica desde 1985. 

Conflitos em 2023 superam os registros de 2020, segundo CPT / Foto: Polícia Federal / Gov.br

“Hoje, a maior parte dos conflitos incide contra aquelas comunidades, normalmente comunidades tradicionais, comunidades indígenas, e até mesmo em áreas de assentamento”, disse.

Ronilson destaca que forças policiais muitas vezes se aliam a jagunços e pistolagem para proteger os interesses dos fazendeiros e grileiros, enquanto as demandas por reforma agrária são negligenciadas, gerando tensões. O fortalecimento do agronegócio, influência no Congresso Nacional e o aumento do armamento no campo são fatores que contribuem para a escalada dos conflitos, deixando um vácuo onde forças privadas exploram recursos naturais às custas das comunidades locais.

“Um fator que a gente considera que é relevante é esse processo de armamento, que nos últimos anos foi muito forte, essa questão do armamento no campo, justificando a defesa da chamada propriedade privada”, afirma o coordenador em entrevista ao Notícia Preta. 

“Esses setores mais ligados às propriedades privadas, à grilagem, ao agro, eles estão cada vez mais armados e tem ocupado um lugar que o Estado brasileiro está deixando vazio, que é esse lugar onde o Estado brasileiro assumia essa relação de conciliação de conflitos, em outras épocas, menos negligente”, completa.

O Caderno de Conflitos de 2023 mostra que há uma tendência de agravamento dos conflitos na região da Amazônia Legal e na expansão das fronteiras agrícolas, especialmente na faixa do Cerrado. O projeto Matopiba é apontado como uma das principais áreas de conflito. 

Matopiba é uma região formada por áreas majoritariamente de cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Surgiu como uma área de expansão agrícola a partir da segunda metade dos anos 1980. Sua produção abrange uma variedade de cultivos, desde tubérculos até frutas, incluindo pecuária. No entanto, sua principal atividade é o cultivo de grãos e fibras, com destaque para a produção de soja, milho e algodão.

O agravamento dos conflitos nessas regiões afeta principalmente povos originários, povos indígenas e comunidades tradicionais e evidencia a necessidade urgente de proteção dessas comunidades e da preservação ambiental. 

Redução em assassinatos

Embora o país tenha registrado aumento nos casos de violência no campo, houve uma queda notável no número de assassinatos, atingindo o menor índice desde 2020, com um total de 31 mortes em decorrência de conflitos. Ronilson explica que os números de assassinatos oscilam, e os indígenas constituem quase metade dos casos, muitas vezes relacionados a processos de retomada de territórios ancestrais. 

Ele destaca que, embora seja um número menor em comparação ao ano anterior, ainda é preocupante, pois ninguém deveria perder a vida lutando por direitos à terra. A articulação da elite agrária contra as comunidades rurais é citada como um dos fatores que contribuem para essas estatísticas, mas a abertura ao diálogo em alguns espaços governamentais tem sido um ponto positivo, embora ainda não tenha sido suficiente para reduzir completamente a violência.

“Pelo menos houve uma articulação em torno de organizações públicas, em torno de agentes públicos e movimentos sociais, de modo a discutir melhor as questões relacionadas à violência no campo. Então certamente isso é um dos fatores que levou esse número a diminuir”, afirmou.

Mas, mesmo com essa redução, ainda há muitas outras formas de violência, como ameaças, despejos e destruição de propriedades.

Rafael Silva, advogado da CPT no Maranhão, destaca que a falta de execução das políticas agrícolas e de reforma agrária previstas na Constituição Federal de 1988 não é uma omissão, mas uma decisão política deliberada.

“Não existe nenhuma omissão, na verdade é uma conduta omissiva, é uma decisão política de não execução das políticas relacionadas à política agrícola e reforma agrária previdente na Constituição Federal de 88, uma prioridade de apoio ao grande setor com força política e econômica, que é o setor dos ruralistas, do agronegócio, inclusive para atender interesses do capital internacional, no mercado global de commodities”, explicou.

Tipos de violência

No total, conforme destacado no relatório, houve 1.588 conflitos por terra associados à violência contra a ocupação, a posse e/ou contra as pessoas envolvidas. No que diz respeito ao primeiro tipo de violência, observa-se um aumento nos casos de invasão de 349 em 2022 para 359 em 2023. No ano passado, 74.858 famílias foram afetadas por esse tipo de agressão.

A pistolagem foi identificada como o segundo tipo de violência predominante contra a ocupação e a posse, registrando seu pico em 2023 com 264 casos, representando um aumento de 45% em relação ao total de 2022. Esse foi o maior número já registrado pela CPT dentro do contexto das famílias afetadas, que alcançou 36.200. A entidade ressalta que os principais afetados por essa forma de violência foram os trabalhadores sem terra (130 ocorrências), posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19).

Outros dados preocupantes do relatório referem-se aos conflitos relacionados ao acesso à água. Os principais agentes de violência nessas situações incluem fazendeiros, governos estaduais, empresários, empresas hidrelétricas e mineradoras. Por outro lado, as principais vítimas são indígenas (24,4%), pescadores (21,8%), ribeirinhos (13,3%), quilombolas (12,4%) e assentados (8,4%).

Quanto aos agentes responsáveis pela violência nos conflitos por terra, destacam-se fazendeiros (31,2%), empresários (19,7%), governo federal (11,2%), grileiros (9%) e governos estaduais (8,3%).

O que motiva os conflitos?

Segundo Raniere da Conceição Roseira, agente da Comissão Pastoral da Terra, a principal causa desses conflitos é a terra. Ele destaca que as comunidades locais disputam com o agronegócio e latifundiários, incluindo o próprio Estado, pela posse da terra. Exemplos incluem a conversão de áreas em parques estaduais sem consulta às comunidades afetadas.

“O Estado também é esse causador do conflito. A principal causa é a terra, que é onde a gente tem a maioria […] Então, o que depende da terra para plantar, para fazer a monocultura, para jogar o veneno, para fazer o que for. A terra é a principal causa dos conflitos”, disse.

Raniere Roseira explica sobre o importante papel do caderno de conflitos, que surge a partir do acompanhamento realizado pela CPT e seus parceiros. Esse caderno não se limita apenas ao registro de ocorrências e violências, mas também inclui a sistematização dos territórios afetados e o acompanhamento contínuo das comunidades.

“A sistematização desses conflitos é mostrar para a sociedade, para o Estado e para a justiça que há essa violência contra esse povo oprimido, contra esse povo marginalizado, criminalizado. Nisso, a gente traz para a sociedade, para nós, a quantidade de pessoas, de famílias, de territórios que a gente não tem titularizado, não tem demarcado por  falta da política pública de regularização fundiária”, destacou.

Indígenas são os mais assassinados

As principais causas dos conflitos registrados foram disputas por terras, representando 71,8% dos casos, seguidas por disputas por água (11,4%), questões de trabalho (10,4%) e resistência (6,3%). A região Norte do país concentrou a maioria das disputas territoriais.

População indígena é a mais assassinada, aponta relatório / Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

Os dados também revelam que os indígenas foram as principais vítimas de assassinatos, respondendo por quase metade dos casos relatados. Além deles, trabalhadores sem-terra, posseiros, quilombolas e até mesmo um funcionário público também foram mortos.

Assassinato de Mãe Bernadete

No documento, um dos casos mais mencionados é o assassinato de Maria Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernadete. Ela foi vítima de um ataque fatal, sofrendo 12 disparos dentro de sua própria casa, no quilombo Pitanga dos Palmares, em 17 de agosto de 2023, na frente de seus netos. 

Essa tragédia ocorreu seis anos após seu filho, apelidado de Binho do Quilombo, também ser morto.

“O Brasil segue sendo o país mais perigoso para defensores dos direitos da natureza. Se for negro ou indígena aumenta exponencialmente o risco de ser assassinado. Esse alto grau de vulnerabilidade requer de nós, povos da terra, e de nossos aliados uma confluência não apenas nos objetivos, mas nas metodologias”, cita o documento.

Fator jurídico

O advogado da CPT no Maranhão, Rafael Silva, ressalta que os conflitos no campo frequentemente acabam nos tribunais, o que, em certos casos, pode ajudar a conter a escalada da violência física contra as comunidades rurais. No entanto, ele destaca que o judiciário muitas vezes demonstra falta de sensibilidade e compreensão em relação aos territórios tradicionais. Rafael enfatiza que esses territórios não se limitam apenas a áreas de moradia e plantio, mas também abrangem aspectos espirituais, de vivência e de preservação ancestral.

“Territórios tradicionais são territórios para coletividades que se tornam inalienáveis para garantia das presentes e futuras gerações, protegendo não apenas áreas de moradia e de plantio, mas áreas de espiritualidade, áreas de vivência, proteção do modo de vida, na verdade, ancestral. E claro, o modo de vida ancestral, utilizando, tendo acesso a tudo aquilo que os desenvolvimentos de tecnologias podem trazer para a qualidade de vida, desde que respeitando a identidade dessas comunidades.

Ele também argumenta que, enquanto o judiciário ainda favorece a posse individual de grandes extensões de terra, ele muitas vezes não reconhece o direito das comunidades tradicionais a seus territórios coletivos.

“Então, essa área desses territórios, ela é uma área amplíssima. Isso, evidentemente, não é de interesse do agronegócio e, infelizmente, o judiciário ainda aceita muito que pessoas individualmente tenham milhares de hectares, mas não aceita que coletividades tradicionais tenham centenas de hectares, por uma visão que é um resquício do racismo estrutural nas mentes do Poder Judiciário”.

Região de Abunã-Madeira

Um dos pontos críticos identificados no relatório é a região de Abunã-Madeira, que abrange 32 municípios nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Em 2023, oito mortes foram registradas nessa área, sendo que cinco foram causadas por grileiros. As vítimas eram membros de um grupo sem-terra.

Segundo a CPT, essa área se tornou um “epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos”.

Acesso livre aos territórios

Para Raniere da Conceição Roseira, agente da Comissão Pastoral da Terra, garantir o acesso aos territórios livres é um desafio. Ele destaca a luta contra um sistema que criminaliza as comunidades e ameaça suas vidas. Apesar da resistência do povo, que enfrenta ameaças e assassinatos, o acesso livre aos territórios enfrenta obstáculos, como a presença de fazendeiros, jagunços e gado, além da utilização de agrotóxicos. 

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“Nosso acesso livre aos territórios é a luta, o que ajuda a permanecer a resistência, a luta, porque daqui se nós sair nós perdemos nossas raízes, nós perdemos nossa história, nossa ancestralidade, nós perdemos nosso conhecimento, nós perdemos a nossa continuidade da nossa geração. A gente não tem acesso livre ao território por causa dessas mazelas que estão dentro do território, né? Mas a gente continua, vamos continuar, vamos continuar lutando, resistindo. Como diz os povos, estamos vivos, de pé e em luta”, concluiu

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Lucas Santos

Lucas Santos

Lucas Santos é estudante de comunicação social, com habilitação em Rádio e TV pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Ingressou na TV UFMA em novembro de 2022, trabalhando na produção de pautas jornalísticas e reportagens. Em junho de 2023, começou a estagiar na TV CIDADE, afiliada da RECORD. Atualmente, Lucas continua trabalhando com jornalismo diário na TV UFMA, exercendo a função de produtor e repórter. Além disso, faz trabalhos com fotografia, gerenciamento de redes sociais e redação.

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