Contrariei muitas estatísticas para estar aqui escrevendo esse artigo: sou um negro com formação acadêmica, tenho um emprego formal e sou fruto de uma adoção. E a última afirmação é a razão de todas as conquistas citadas anteriormente. Fui escolhido. Fui adotado. Ganhei uma família maravilhosa, que é a maior responsável por tudo aquilo que sou. E o que seria de mim sem eles? Tentar dar uma resposta a essa pergunta é falhar miseravelmente. Eu nada seria. Eu não teria escolhas, tampouco, oportunidades para ser.
Contei algumas linhas da minha história para reforçar como uma oportunidade dada é importante. E como a falta dela no caminho de alguém pode custar uma vida. E tem custado… de milhares de milhares. Sobretudo, as nossas vidas negras.
NEGROS SÃO MAIORIA NA FILA DE ADOÇÃO E OS MAIS REJEITADOS
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Brasil existem atualmente 9.420 crianças ou adolescentes no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), que estão aptas e aguardam por uma família em instituições de acolhimento de todo o país. Dessas, 6281 são negras (pretas ou pardas), o que corresponde à 66,68%. O número de brancas é 3.086 (32,76%), 35 (0,37%) são indígenas e 18 (0.19%) são consideradas amarelas.
Além de ser a maior raça/etnia em número nos abrigos, as crianças negras são as mais rejeitadas entre as famílias/pessoas que pretendem adotar. Atualmente o número de pretendentes cadastrados no sistema de adoção é cinco vezes maior que o de crianças abandonadas – são 45.737 de pessoas na fila. Desse total, 42.280 – ou seja 92,44% – aceitariam ter um filho branco. No entanto, apenas 24.912 (55.97%) estão dispostos a ter um filho negro.
De um lado, mais de 45 mil pais pretendentes a adotar. Do outro, pouco mais de 9 mil filhos possíveis em busca de uma família. O Cadastro Nacional de Adoção questiona em seu guia: ”Por que será que ouvimos falar que a espera na fila de adoção é tão grande? Por que os abrigos seguem cheios quando há tantas pessoas dispostas a adotar? É verdade que todo o processo de adoção deve ser extremamente cuidadoso e requer tempo para ser concluído. Mas o principal problema é que, ao se inscrever no CNA, a maioria das pessoas indica um perfil muito restrito, deixando de fora as crianças reais que estão nos abrigos – maiores de 5 anos, pardas ou negras, com deficiência, doença crônica ou grupos de irmãos. Estas, na verdade, são as crianças que mais precisam de uma família carinhosa e cuidadosa. No entanto, elas estão crescendo em instituições quando há tanto amor na fila, esperando por um filho idealizado. Nosso objetivo com esta publicação é propor uma reflexão àqueles que têm o desejo de adotar, para promover cada vez mais encontros entre pais e filhos, entre quem tem amor para dar e quem precisa de amor”.
Os números do Cadastro Nacional de Adoção evidenciam o racismo marcante no pais. O racismo, que muitas vezes, é velado, pois ele também é coisa de gente do bem, de gente querida, de pessoas que respeitam, que dão oportunidades, que adotam… o racismo é também coisa de gente que nem sabe que está sendo racista. O racismo não é uma questão moral, é uma questão política. Não é simplesmente o que se vê, ele se reproduz involuntariamente.
Costumo refletir que todo bônus tem o seu ônus e o de viver e crescer numa sociedade escravocrata é herdar pra si o racismo. Pior, o reproduzir diariamente. Numa postura, num olhar, no viés do inconsciente. E a consequência disso é o reflexo também na atitude dos pretendentes que sonham em um dia ter um filho adotivo. A grande maioria ainda traça um perfil desejado de adoção baseado nas relações racialmente constituídas no Brasil, onde o belo é o branco. Na pirâmide de privilégios, o homem branco aparece no topo, seguido pela mulher branca e na base dessa estrutura, aparecem o homem negro e, por último, a mulher negra.
ADOÇÃO INTERÉTNICA
No guia para adoção de crianças e adolescentes do Conselho Nacional da Justiça existe um tópico destinado aos pretendentes brancos que decidem adotar crianças negras. ”Se você optar por adotar uma criança de uma etnia diferente da sua terá que se confrontar interna e externamente com a cultura nefasta do racismo e do preconceito, enraizada em nossa sociedade. É importante investir no diálogo franco com sua família extensa, coibindo qualquer forma de discriminação, mesmo que pareça uma “brincadeira inofensiva”. Muitas vezes é preciso enfrentar e reeducar familiares e amigos sobre o preconceito explícito ou encoberto por piadas e apelidos. Filhos são filhos, independente da cor da pele e da etnia. Qualquer dificuldade será vencida com diálogo, informação e perseverança”, pontua.
O TABU DO NEGRO ADOTADO
A adoção é um grande tabu para os negros. Um bloqueio que pode perdurar anos – até a fase adulta. E esse desconforto pode ser explicado, sobretudo, por um sentimento: o de inadequação. É normal que a pessoa negra carregue consigo esse sentimento de não pertencimento. A gente escuta de todos os lados que todos são iguais e quando vivenciamos uma experiência que contrasta ao que nos foi ensinado, achamos que o problema está em nós.
No meu caso, em meu ciclo familiar, nunca me senti na condição de filho adotivo. Meus pais, que tiveram quatro filhos – sendo dois frutos de uma adoção -, tiveram excelência em nossa criação e sempre nos tratou da mesma forma. No entanto, as pessoas – inocentemente ou não – me obrigavam a se colocar nessa posição. Sempre foi comum para mim ouvir comentários do tipo: “nossa! vocês são tão diferentes”; “são filhos dos mesmos pais?”; “mas são irmãos de sangue mesmo?”; ou comentavam o que era mais doloroso: “vocês são irmãos legítimos, legítimos?”.
E a realidade é que no fundo da minha alma, esses comentários me doíam muito. Me deixavam numa situação muito desconfortável. Sem respostas. Contando os segundos para pular para o próximo assunto. Mas todo o constrangimento sempre foi muito bem disfarçado. Aprendi a lidar com isso. Da mesma forma do racismo. Envelhecendo e subindo degraus de consciência humana, não me calo mais. Me enxergo. Me enalteço. Não lido com essas atitudes de forma fácil. Isso me retém ódio, angústia, falta de esperança… o povo preto sabe do que estou falando.
COMO ADOTAR
O Conselho Nacional de Justiça disponibiliza, em seu portal, a publicação Três vivas para a adoção – uma espécie de guia com um passo a passo explicativo, informações sobre busca ativa e os diversos tipos de adoção. http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/05/085549ad1ee68b11de13a0e037d6e95b.pdf
Amooo todas as pautas aqui propositivas. Nao vamos nos calar, e é com muito orgulho que sou a tia do meu amado sobrinho Thiago Augustto.
Adotei 4 irmãos : dois deles são negros e dois pardos. Luto contra o racismo todos os dias: olhares, comentários, indiferença. Ensino pra eles que são lindos, capazes, e podem ser o que quiserem. O céu é o limite! Parabéns pelo texto! Vou ler junto com meus filhos!