Pouco mais de um ano após o assassinato da vereadora pelo Rio de Janeiro Marielle Franco, o documentário “Sementes” levará para a tela o impacto desta tragédia na vida social do Brasil. A percepção é que o país vive o maior levante político conduzido por mulheres negras de sua história.
“Vê-las ganhando espaço na política institucional traz novos ares a esses tempos nebulosos em que estamos vivendo. E tenho certeza que essa paisagem das mulheres negras nas casas legislativas irá se ampliar. Esses tempos de terror irão passar, mas a marcha desta mulheres não tem como parar”, analisa Éthel Oliveira, uma das co-diretoras do filme.
A obra acompanha, desde junho de 2018, as candidaturas a deputada estadual e federal de seis mulheres no Rio de Janeiro: Talíria Petrone, Mônica Francisco, Renata Souza, Jaqueline De Jesus, Rose Cipriano, Tainá de Paula. As três primeiras foram eleitas – uma para a Câmara Federal dos Deputados e as outras duas para a Assembleia Legislativa do estado.
“Sem financiamento e na guerrilha, tínhamos que definir um número possível de mulheres para acompanhar. Decidimos por pautas diferentes: segurança pública, habitação popular, transfobia e o quê fazer para evitar o preconceito, educação popular, a favela, Baixada Fluminense, a pauta evangélica progressista”, explica a outra co-diretora do produto, Júlia Mariano.
A produção, da Noix Cultura em associação com a Sapucaia, tem em seus créditos apenas mulheres, sendo metade delas negras (em funções como direção, roteiro, direção de fotografia e som).
“Foi uma questão muito importante para nós. Ela se relaciona com a forma de olhar e como buscamos contar essa história. Esses olhares precisam ser negros. O processo confirmou o quanto o audiovisual ainda é dominado por homens brancos e pela heteronormatividade, o que nos dá ainda mais energia para seguir desconstruindo esse cenário”, afirma Júlia.
Mais que o desafio de acompanhar a corrida eleitoral, apresentou-se a dúvida sobre como registrar a posse das eleitas e conciliar este avanço com a própria conclusão do filme. Além disso, a partir do entendimento de que o movimento é contínuo, também manter o foco sobre o desdobramento das atividades do trio que não assumiu cargos.
“Acompanhamos os meses iniciais dos mandatos, mas pela a falta de recurso e pela a urgência de circulação finalizamos as filmagens em 14 de março. A potência das não eleitas é imensa e o meu ativismo está alinhado com o delas. Nós mulheres pretas temos uma agenda comum que é o combate ao racismo e a criação de oportunidades que minimizem a agonia das classes populares. E agora que nos conhecemos estamos mais juntas nessa aliança”, conta Éthel Oliveira.
Queremos fazer um ótimo filme que dê conta de retratar esse momento político de fortalecimento das mulheres negras na política. E levá-lo onde normalmente não chega: bairros periféricos, favelas, escolas públicas, institutos federais, bibliotecas populares, etc.
O crime cometido contra Marielle Franco atingiu o estado democrático de direito e mobilizou forças em torno das bandeiras que ela defendia. “Sementes” simboliza não apenas o incremento da atuação político-partidária e no processo eleitoral, mas a conscientização de que essas vozes precisam falar, serem ouvidas e reverberar.
“Houve um efeito de desbaratinamento e confusão da minha própria potencialidade [a partir da notícia do crime]. A medida que ia encontrando outras mulheres os sentimentos foram se organizando. O filme é um trabalho que me a trouxe a oportunidade de reorganizar as minha emoções e promoveu o meu encontro com outras mulheres incríveis”, destaca Éthel.
A ideia da equipe é concluir o documentário em agosto. O projeto divide-se em três momentos da evolução destas campanhas: pré-candidaturas e campanhas; posse e primeiras semanas de mandato; dia a dia dos parlamentos e atuação no contexto da política tradicional.
“Queremos fazer um ótimo filme que dê conta de retratar esse momento político de fortalecimento das mulheres negras na política. E levá-lo onde normalmente não chega: bairros periféricos, favelas, escolas públicas, institutos federais, bibliotecas populares, etc. Também exibi-lo em festivais e salas de cinema, mas paralelo a isso, promover eventos nos bairros, levando o cinema para as ruas, trazendo as personagens do filme para os debates, fomentar diálogo através do cinema”, pontua Júlia Mariano.
BATE-PAPO 4P – COM ÉTHEL OLIVEIRA E JÚLIA MARIANO
NOTÍCIA PRETA: Como interpretam o recado dado por parte da população do Rio de Janeiro para o restante do país?
ÉTHEL OLIVEIRA: Tenho certeza que poderíamos ter eleito ainda mais mulheres negras se o volume de dinheiro de campanha que vai para os homens brancos fossem pra elas. A professora Rose Cipriano fez 17 mil votos numa campanha com grana do próprio bolso e vaquinha online. O filme traz a dimensão não apenas da diversidade de mulheres pretas que temos como opção, mas nos apresenta uma realidade crudelíssima: para essa mulheres a grana é muito menor. O recado da população é muito direto ao meu ver: é sobre a importância da representatividade. Tanto é que as eleitas são uma acadêmica favelada, uma pastora e uma mulher jovem. Então, há um espectro de representatividade bastante diverso nisto. Mas o fato é que o recado deve ser direto aos partidos: a representatividade é importante, mas mais importante ainda é a proporcionalidade. Queremos as mulheres negras no poder, mas elas não podem estar isoladas, então queremos mulheres negras em mais número! E para eleger mais mulheres negras é preciso reequilibrar a balança da distribuição dos recursos de campanhas, pois temos que levar essas propostas políticas cada vez mais longe. Os homens brancos dos partidos precisam descer de seus pedestais e dar lugar e recursos a essa vozes que avançarão mais profundamente para reequilibrar a dinâmica política do Brasil.
JÚLIA MARIANO: Nas eleições de 2018, foram mais de 250 mil votos para as deputadas negras (estadual e federal) eleitas pelo Rio de Janeiro. E a grande maioria das campanhas sem recursos, ou com muito pouco, como aponta Éthel. Os números não parecem altos, mas se compararmos aos pleitos anteriores, teve-se um crescimento de 151% na representatividade de mulheres negras no Legislativo carioca, segundo o Congresso em Foco. Isso sem dúvida é um recado, tanto para os próprios partidos, quanto para a oposição! Olhar de perto a atuação política das mulheres negras, nas ruas e nas instituições, alumia a vista.
NOTÍCIA PRETA: Qual espaço o filme ocupa no cenário político instituído a partir de 1º de janeiro de 2019?
ÉTHEL OLIVEIRA: O filme se insere como memória e como agente colaborador para transformação do panorama de agravamento das mazelas brasileiras. Ele é um arquivo e ao mesmo tempo um ponto dinâmico onde podemos nos reunir em torno dele para repensarmos as estratégias e saídas para uma sociedade mais justa.
JÚLIA MARIANO: A posse de Bolsonaro e o caos que o país está desde as eleições de 2018, ou melhor desde antes, deixa tudo meio turvo, os caminhos rarefeitos. Olhar de perto a atuação política das mulheres negras, nas ruas e na instituição, alumia a vista. Mostra caminhos possíveis de atuação política, da necessidade de disputar também esse espaço institucional para gerar mudanças efetivas. OSementes é uma forma de contar sobre a potência transformadora das mulheres negras, de como essa potencia pode indicar linhas de fuga possíveis para a insanidade política.
NOTÍCIA PRETA: Como mobilizar o público para o filme?
ÉTHEL OLIVEIRA: Nosso público é aquele que já está interessado em se informar mais acerca do debate racial brasileiro e o público que está alheio a este debate. Para mim a questão racial no Brasil é estruturadora do modo em que este país tem se construído ao longo dos séculos. O cenário político em que vivemos atualmente é consequência das deformidades elegidas dentro e fora do campo da politica institucional. E isso tem tudo a ver com a blindagem do acesso da população indígena, negra e popular aos espaços institucionais e de poder. Inclusive o audiovisual está implicado nisso de maneira estratégica. Então, novamente afirmo, meu objetivo é fazer um bom filme, pois este é meu trabalho, mas junto disso, esta obra tem o compromisso de promover o debate público e acerca do racismo estrutural e institucional no brasil.
JÚLIA MARIANO: O que nos move é fazer um ótimo filme que dê conta de retratar esse momento político de fortalecimento das mulheres negras na política. Mostrar como é possível pensar uma nova forma de fazer política, que combine militância e política institucional. De mostrar como é importante que corpos negros ocupem os espaços institucionais antes reservados apenas para homens e mulheres brancos representantes das elites. A sensação é que estamos ladeira abaixo, prova disso é a proposta de lei do Moro (pacote anti-crime). Parece que estamos indo para um caminho ainda mais sombrio de ultramilitarização da segurança pública com mais licença para matar. E a não resolução do caso da Marielle Franco, a falta de resposta sobre o mandante do crime só me confirma esse movimento. Por isso, a presença e atuação das mulheres negras, comprometidas com suas causas e com uma nova proposta de pensar e disputar a política institucional, parece-me a linha de fuga possível desse caos surreal que a política brasileira se tornou nesse último ano. E vejo na diversidade de mandatos de diversas mulheres em todo Brasil o resgate de uma sanidade política. A atuação delas já reverbera!
NOTÍCIA PRETA: Por que a escolha pelo financiamento coletivo para viabilizar a obra?
ÉTHEL OLIVEIRA: A emoção dessa insurgência das candidaturas das mulheres negras fez com que tivéssemos que agir rapidamente, de forma que não havia tempo de esperarmos um edital. Queríamos fazer um filme no calor da ação. Observar esse arco “do luto à luta” das organização partidárias e seus apoios populares. Somente lançando-nos numa guerrilha de produção poderíamos registrar esse momento. Foi uma logística muito dispendiosa filmar seis candidatas. Em diversos momentos tivemos a necessidade de reunir de três a cinco equipes (câmera, som e produtor) para cobrir momentos importantes como a “Marcha Das Mulheres Negras”, em Copacabana, a mobilização pelo “Ele Não”, na Cinelândia, o dia da eleição no primeiro turno e o 14 de Março passado. Imaginem os custos disso? Reunindo amigos na parte técnica íamos pro campo com a vontade de fazermos o melhor filme que podíamos com o dinheiro do próprio bolso. Não havia a menor possibilidade de esperarmos um financiamento enquanto rodávamos o filme. Íamos fazendo e ao mesmo tempo tendo algumas reuniões com possíveis financiadores. Até agora não temos resposta concreta de ninguém, mas temos um grande filme!
JÚLIA MARIANO: O Sementes é um projeto 100% independente realizado com poucos recursos próprios, muita dedicação, compromisso e generosidade. Estamos há mais de sete meses trabalhando sem receber, com a produção (Noix Cultura) bancando os custos mínimos de alimentação e transporte, seguindo em frente porque acreditamos muito na importância do projeto. Estamos em um momento crítico do país e isso afeta diretamente as políticas públicas em geral. Com a Cultura não está sendo diferente. No Rio de Janeiro, estado onde estamos produzindo o documentário, não há nenhum fomento municipal ou estadual para produção audiovisual. Zero. E desde que Bolsonaro assumiu também não há nenhuma política cultural definida para o cinema e cultura em geral. Os caminhos que haviam, anteriormente, para o fomento audiovisual, por ora, não existem mais. Por isso optamos pelo financiamento coletivo. E também por acreditar no interesse que o filme gera nas pessoas, na vontade coletiva de contar essa história.
SEMENTES
Link para contribuição: https://benfeitoria.com/filmesementes
Produção Executiva: Noix Cultura
Produtores Associados: Sapucaia
Direção: Júlia Mariano e Éthel Oliveira
Roteiro: Helena Dias e Lumena Aleluia
Coordenação de Produção: Helena Dias e Júlia Mariano
Direção de Fotografia: Marina .S. Alves
Montagem: Mariana Penedo
Direção de Arte e Design: Julia Rocha
Produção: Camilla Shinoda, Clara Alves, Carolina Mazzi, Éthel Oliveira, Julia Araújo, Julia Rocha e Rafaela Rocha
Fotografia Adicional: Beatriz Ludolf, Carolina Matias, Clara Cavour, Dianna da Costa, David Alves, Gabrielle Souza, Gê Vasconcelos, Jamille Pinto, Júlia Mariano, Julia Parucker, Kellyan Costa, Marina Alves, Priscila Alves, Rafael Mazza e Tayana Nascimento
Assistente de Câmera: Gaia Laforde e Lucas Quintana
Fotografia Still: Lumena e Maria Clara Mazini
Técnicos de Som: Anne Santos, Dayane Pinto, Éthel Oliveira, Helena Dias, Júlia Mariano, Juciele Fonseca, Irla Franco, Isabela Godoi, Mariana Graciotti, Thiago Dideus e Vitoria Parente
Desenho de Som: Camila Machado