Por Marco Rocha*
Todos nós, em algum momento de nossas vidas, fomos surpreendidos com a falta de dinheiro, emprego e perspectivas positivas de posicionamento no mercado de trabalho. E, diante disso, tivemos que praticar aquilo que os economistas “deuses do mercado financeiro” chamam de economia criativa. Eufemismo utilizado para descrever uma economia desigual, que afeta frontalmente os mais pobres e mais vulneráveis. Mas, para essa parcela enorme da população, o termo pomposo não tem nada de criativo, pois sabemos bem que, na falta de um trabalho formal, o que nos resta é o bom e velho “bico”.
Nós brasileiros temos um hábito muito curioso que é dar nomes carinhosos para as nossas mazelas diárias e o bico é um deles. Para que chamar um emprego de informal, mal remunerado e precarizado se podemos, simplesmente chamá-lo de bico? Até porque o bico não cabe em convenções. Nem no “economês” feito para nos confundir, nem no limite da sua atuação, o que significa que podemos participar de vários bicos ao mesmo tempo, sem muitas regras ou burocracias. Basta desrespeitar os
seus limites físicos e mentais para, minimamente, colocar comida na mesa. Sabemos que o bico só existe porque existe a necessidade, sem romantização ou suavização. Mas, parece que o bom e velho bico, virou nicho de mercado.
Você já ouviu falar de polywork? Em bom português, múltiplos trabalhos, onde você pode oferecer a sua força de trabalho de forma fatiada em horas, para duas ou mais empresas, com a promessa de que isso lhe trará mais renda e mais autonomia. Tudo isso permitirá que você desenvolva múltiplas habilidades e, claro, torne-se, em pouco tempo, um profissional único e imprescindível para o mercado. Isso não te parece familiar? Já viu algo semelhante acontecer próximo a você, como aquela vizinha que fazia
quentinhas pela manhã, era “explicadora” a tarde e a noite fazia bolos de pote para vender no dia seguinte? Possivelmente sim, mas, nesse caso, é a escassez e a necessidade que impulsionaram essa trabalhadora a abdicar do seu direito de viver, para sobreviver fazendo bicos.
Esse período pós-pandêmico vem produzindo ou acentuando, uma série de deformidades trabalhistas, banhadas de um verniz modernoso que nos leva a acreditar na falácia meritocrática do “seja o seu próprio chefe”. O que empurra uma massa enorme de trabalhadores para um precipício disfarçado de altar, que vende a ideia de autonomia sobre o próprio tempo quando, na verdade, o que realmente se vende é a sua força de trabalho, por uma ninharia, para empresas que ninguém sabe muito bem quem
como operam ou quem está por trás delas. A única coisa que interessa é que elas te ofereçam serviços de chofer, de entregador de tudo o que imaginar, de entretenimento, de sexo ou do que quer que seja, as custas de infinitas horas de trabalho que são, pretensamente, oferecidas pelos trabalhadores quando, o que de fato ocorre, é a oferta de mão de obra nos moldes que beiram a escravidão.
Mas, é claro que, para muitas, muitas pessoas esse texto não corresponde a realidade. E, sabe por quê? Porque, segundo elas, essas pessoas antes faziam bicos e agora podem ser consideradas donas do próprio tempo e da própria força de trabalho. Mais um eufemismo para atuar no apagamento do real significado disso tudo: o bico. Mas, voltemos ao polywork. Segundo muitas matérias publicadas ao longo de 2024, a geração Z, formada pelos nascidos entre 1997 e 2010, tem demostrado um grande
interesse pelo polywork, pois, acreditam que esse é um caminho para o desenvolvimento de inúmeras habilidades em um mercado de trabalho em constante transformação.
Segundo essas fontes, pessoas entre 14 e 29 anos, sim, eu disse 14 anos, preferem trabalhar em 3 atividades simultâneas para que, segundo os especialistas em polywork, seja possível usufruir de um ecossistema de oportunidades durante o processo de desenvolvimento profissional. Existem tantas camadas nessa afirmativa, que se torna um desafio interessante desmontar essa falácia montada por “faria limers” de plantão. Não há subjetividade quando se fala sobre adolescentes desempenhando
múltiplas funções para que possam se desenvolver em um ecossistema de oportunidades. Esse panorama descreve, de forma quase indecente e muito objetiva, que jovens oferecem a sua força de trabalho a baixíssima remuneração, por escolha.
Segundo dados da PNAD contínua de 2023, quase 545 mil brasileiros entre 14 e 29 anos declararam atuar em duas ou mais atividades laborais, o que mostra, segundo especialistas, que essa é uma característica da geração Z, que vive em busca de melhores condições de vida para além do emprego formal. Se vivêssemos nos países nórdicos, talvez esses dados fizessem algum sentido, porém, quando observamos a realidade brasileira, isso é obsceno. No Brasil, 30 milhões vivem com alguma insegurança alimentar e 39, 1 milhões de trabalhadores estão na informalidade. Destes quase 40 milhões de trabalhadores, cerca de 24 milhões são pretos e pardos. Isso sem contar com os empregos formais, onde a população negra ganha os menores salários, sendo obrigada a recorrer ao ecossistema de oportunidades da economia formal para colocar comida na mesa. Contém ironia.
Num país onde a economia é fundamentalmente excludente com a população jovem e negra, é um acinte quando vemos reverberando por todos os lados, conceitos como o do polywork que, utilizando uma embalagem bonita e cafona, tentam nos fazer acreditar que sobrecarga de trabalho é a nova tendência. Que o esfacelamento da saúde mental, sobretudo dos mais jovens, é um mal necessário para que se alcance o sucesso. Que o desrespeito das relações trabalhistas significa que há uma nova ordem mundial no mundo do trabalho onde ser o seu próprio chefe é uma maravilha. E, por fim, tentam a
todo custo nos fazer acreditar que o bico que sempre fizemos para sobreviver, é coisa do passado. A nova trend do momento é o polywork, onde você pode ganhar seu dinheiro e se tornar o dono do seu próprio tempo. Sejam bem vindos a “tiktokização” do mundo do trabalho.
*Marco Rocha é biólogo, professor, palestrante, comunicador e pesquisador com mestrado em Biologia celular (Fiocruz), Doutorado em Biotecnologia Vegetal (UFRJ e University of Ottawa/Canadá), com Pós-doutorado em Plantas medicinais com atividade antiviral (Fiocruz), com dezenas de artigos e capítulos de livros publicados em literatura científica. Professor universitário a mais de vinte anos, atuando nos cursos da área de saúde das universidades públicas (UFF e UFRJ) e nas principais universidades privadas do Rio de Janeiro. Marco Rocha também é ator, escritor, comunicador e administra as mídias sociais @aquipensando01 onde promove divulgação científica, reflexões sobre o cotidiano, discussões sobre etarismo e ativismo antirracista. Autor dos livros @aquipensando01 – coleção instapoetas e co-autor do livro Pretagonismos.
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