Por Mariângela de Castro é advogada
A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), diga se passagem acertada, de que não existe racismo reverso tem gerado inúmeras discussões. Muito do que se tem repercutido se refere a falta de letramento racial do nosso País. Sim, de todos, brancos e negros. Por isso, surgiram desde o dia da decisão do
STJ diversas opiniões divergentes e, até mesmo, proposta de políticos eleitos para modificar a lei que tipifica a injúria racial. Ou seja, devemos estar vigilantes e combativos para que as estruturas de poder não trabalhem para dar uma “visão à brasileira” e tentar dentro do próprio Estado nos empurrar uma visão distorcida do significado de racismo.
Reafirmo que o entendimento do STF se baseou naquilo que também entendo sobre racismo: uma reprodução social que permeia as estruturas da sociedade e impede que as condições de vida e acesso dos negros sejam de forma igual em todos os âmbitos: sociais, políticos e econômicos. É algo maior, que
atravessa a pessoa simplesmente por nascer negra. Não são casos individuais de injúria, que escutamos todos os dias na TV ou nas rodas de conversa. É algo ainda maior. Não menosprezando o sentimento destas pessoas.
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O que o STJ faz com isso é endossar que o racismo é algo histórico e estruturado. O julgado pondera que “o racismo é um fenômeno estrutural que historicamente afeta grupos minoritários, não se aplicando a grupos majoritários em posições de poder”. Assim, o aponta que a injúria racial só se revela quando há uma relação de opressão histórica. Assim, o crime de injúria racial, que está previsto lá no art. 2º-A da Lei nº 7.716/1989, visa proteger grupos minoritários historicamente discriminados. Como muitas vezes define a filósofa, Djamila Ribeiro, o racismo é um sistema de opressão e produção de riqueza que estrutura as relações sociais no Brasil.
Mito do racismo reverso e democracia racial
Costumo dizer que os termos “racismo reverso” e “democracia racial” são dois desserviços para a nossa história. Uma tentativa de amenizar o que passaram e o que passam os negros desde a abolição da escravidão, que foi tardia, feita sem qualquer amparo e desonesta. Uma “abolição” que traz reflexos até hoje para a população negra nos mais diversos indicadores como Educação, Saúde, Distribuição de Renda, Emprego, Violência e, por aí vai. Indicadores estes explorados e corroborados em pesquisas feitas por diversos órgãos sérios desse País.
Se você for parar pra pensar: é desonesto também comparar as experiências opressivas e discriminatórias sofridas pelos negros com o sentimento que brancos alegam sentir quando são injuriados pelas características que a própria branquitude produziu ao longo da história. Nesse último caso, pode caber injúria comum? Se os magistrados entenderem, sim! Mas não será racismo. Está bem longe de ser!
É importante esclarecer que a inexistência do racismo reverso não significa que pessoas brancas não possam ser vítimas de ofensas ou discriminação. No entanto, nesses casos, a conduta pode ser enquadrada como injúria comum, prevista no artigo 140 do Código Penal, quando há ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém. A diferença essencial está no fato de que o racismo não se refere apenas a um ato isolado de ofensa, mas sim a um sistema histórico de exclusão e opressão. Assim, uma injúria contra uma pessoa branca, ainda que reprovável, não se enquadra como racismo, pois não existe um histórico de subjugação estrutural da branquitude na sociedade brasileira.
Evolução na Legislação
Aproveito o tema para relembrar o quanto a legislação para punir a injúria racial e o racismo foram tão lentas como o fim da escravidão no Brasil. De acordo com a Fundação Palmares, a primeira lei que tornou contravenção penal a discriminação racial foi editada em 1951: Lei Afonso Arinos. Na prática ela não teve tanto efeito, mas serviu para chamar atenção da sociedade sobre racismo. Já em 1985, ela ganha nova redação e inclui entre as contravenções penais, a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil. Essa última foi a Lei 7.437 , chamada de Lei Caó.
A Constituição Federal de 1988 traz uma série de artigos que buscam a “igualdade” e pune o racismo como crime inafiançável, imprescritível e sujeito a pena de reclusão. A partir daí surgem diversas leis infraconstitucionais que buscam não só a vertente punitiva, mas também a de prover políticas públicas
que alcançam as pessoas negras para promoção dessa igualdade como, por exemplo, a política de cotas.
No âmbito internacional, cito a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” e a “Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Intolerância”. Esta última, inclusive, é um Tratado aprovado pelo Congresso Nacional e internalizado com status de norma constitucional. Internamente temos ainda o Estatuto da Igualdade Racial (EIR) que neste ano completa 15 anos.
Tentativa de Ressignificar?
Conforme já circula nas páginas de notícias, dois deputados eleitos pelo Estado de São Paulo apresentaram projetos de lei semelhantes para modificar a legislação e incluir a possibilidade de punição para discriminação contra brancos ou que a proteção contra o racismo se aplique de forma igualitária a todas as raças e cores. Isso mostra algo que sempre repito: de que as pessoas sabem o significado do racismo e tentam ressignificá-lo sempre que lhes convém.
É esta vigilância para a qual chamava atenção lá no início do artigo, pois a luta para promulgar, bem como fazer cumprir leis e entendimentos jurídicos, quando se trata de minorias, é muito complexa. Diante de tamanha polarização nacional no que se refere a política, não se assustem se daqui a pouco outras propostas com esse teor surgirem Brasil a fora. Contudo, precisamos estar sempre letrados racialmente e informados para poder defendermos aquilo que realmente é, da pós-verdade que querem criar.
Para concluir, não devemos cair na falácia de que esta é uma luta do branco contra negros. Falamos do mínimo de senso de justiça e de reconhecer a desigualdade racial que ainda existe neste País, o que impede de fato o acesso a uma democracia plena.
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