Por Jorge Santana*
O Brasil, como nós sabemos, mas não podemos cansar de repetir, foi o maior mercado escravista da história moderna. Cerca de metade do escravizados africanos, sequestrados em África e transportados pro continente americano, vieram para cá. Nós temos na nossa curta história, 400 anos de escravidão e apenas 133 anos de pós-abolição. Obviamente que os 400 anos infelizmente deixaram um legado de segregação racial o qual não pode ser superado de um dia para outro. A branquitude produziu 4 séculos de escravidão, mas acham um exagero 20 anos de reserva de vagas para negros nas universidades e concursos públicos. Cara de pau, é o sobrenome deles.
Às vezes, têm muitos assuntos que nós negros ficamos extenuados de falar e de explicar, mas infelizmente é necessário. Mais uma tragédia aconteceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, mais uma mulher preta assassinada. Isso porque nem conseguimos ainda digerir a maior chacina da história do estado, a chacina de Jacarezinho. Enquanto enterramos os mais de vinte mortos pelo do Estado que promove necropolítica, o Estado mata mais uma, dessa vez, grávida.
Kathelen morava na favela do Barro Vermelho, no bairro do Lins, na Zona Norte da capital fluminense. Essa favela fica na encosta de uma serra que ficou conhecida no século XIX pelo nome de “ Serra dos Pretos Forros”. O substantivo masculino forro tem como significado escravizados que compraram ou ganharam a liberdade, por meio da alforria. No século XIX alguns conseguiram esse privilégio e muitos deles foram morar longe do centro da cidade. Por que foram morar tão longe? Porque tinham medo de serem reescravizados, o que era comum. Porque tinham medo de serem pegos forçadamente para servir nas piores condições na Marinha ou no Exército e punidos com chibatadas. Porque não queriam ser perseguidos pela Polícia racista desde daquele tempo. Porque queriam viver uma vida sem receber ordens dos brancos.
A serra dos Pretos Forros ficava longe da cidade, longe dos brancos e oferecia uma vida boa para os libertos, quilombolas e fugidos. Contudo, a cidade não é estática, engessada e morta. A cidade é viva, cresce e se expande, o crescimento da população, a reforma urbana expulsando os pobres do centro da cidade, a migração, entre outros motivos, fizeram a cidade chegar até a Serra, o nascimento das favelas e com elas a chegada da polícia racista. No Brasil, favela é apenas problema de polícia. Desde então, a serra habitada pelos negros deixou de ser um lugar de paz. É nessa serra, em que vivia a jovem Kathlen Romeu, assassinada pelo Estado brasileiro.
Não tenho dúvida que antes da chegada da cidade ou do Estado racista na Serra dos Forros, os negros lá viviam melhor. Em 11 de maio de 1988, ano em que a abolição da escravidão completava o centenário, uma manifestação dos movimentos negros denunciava a farsa da abolição. Os descendentes dos forros que viveram na serra sofrem até hoje com essa farsa, são mortos pelo Estado, a saudosa Kathlen e seu filho foram mais uma das vítimas do genocídio. Este iniciado aqui, desde o primeiro escravizado que desembarcou nessas terras.