Hidrovia do rio Tocantins ameaça ribeirinhos, quilombolas e indígenas

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O ribeirinho Ronaldo Macena aprendeu a pescar com o pai e o avô e sabedoria que deles herdou o faz ter uma certeza: a hidrovia no rio Tocantins é uma ameaça à sobrevivência de comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas. Para tornar o rio navegável, o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (Dnit) prevê obras de dragagem em uma extensão de 177 quilômetros e de explosão de pedras submersas em outros 35 quilômetros do local conhecido como Pedral do Lourenço (ou Pedral do Lourenção), no sudeste do Pará. Pesquisadores ouvidos pela Amazônia Real temem pela repetição de um “novo Belo Monte” – hidrelétrica no rio Xingu que causou a destruição dos modos de vida de milhares de pessoas.

A hidrovia do rio Tocantins é um sonho antigo dos governantes para integrar o centro do País com a região Norte pelas águas. Com a construção da hidrelétrica de Tucuruí, inaugurada em 1984, a ideia deles é que uma via inavegável pelo rio favoreceria o fluxo de grandes embarcações carregadas de minérios e grãos. Mas a megaoperação ameaça, segundo comunitários e pesquisadores, contaminar o rio que é hábitat de espécies protegidas da fauna amazônica. Comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas sobrevivem da pesca na região e, sem ela, podem ser empurrados para a insegurança alimentar.

Comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas sobrevivem da pesca na região. Foto: Reprodução/Agência Pará

“Do que é que nós vamos viver, se os peixes vão morrer com essas explosões? Mesmo que os peixes voltem, depois de não sei quantos anos, como que a gente vai pescar, com a quantidade de barcaça passando de um lado pro outro aqui na frente?”, questiona Ronaldo Macena, que preside a Associação da Comunidade Ribeirinha e Extrativista da Vila Tauiry (Acrevita), cujo lema é: “Nós ribeirinhos temos uma relação única com o rio. Nós e o rio somos um só”.

Macena conta que existem mais de 30 pontos de pesca que serão inviabilizados pelas obras da hidrovia. “Mexendo com a natureza, impactando a natureza, eles vão nos impactar. Mexer no rio é mexer com a gente também, porque todo nosso contexto de vida vai mudar.  Um rastro de destruição para o resto de nossas vidas”, atesta ele, que mora na comunidade ribeirinha e extrativista Vila Tauyri, no município de Itupiranga.

“O Pedral do Lourenço é o lugar onde a gente mais pesca. Tem tudo que é tipo de peixe, a curimatá, o piau, a corvina, o barbado, o jaú, a pirarara, o filhote, o mapará e muitos outros. Além desses, tem algumas espécies raras que também vão morrer”, conta Macena. Outra liderança ribeirinha, Anderson Silva dos Santos, conta que é de conhecimento dos ribeirinhos o local onde cada peixe está e em que lua eles são encontrados com mais frequência, o que ele chama de “luada”. 

“Com a dragagem e a derrocagem é como se eles tivessem privatizando o rio, que é do uso de todos nós ribeirinhos”, reflete a liderança, que preside a Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista de Vila Praia Alta (Acrefipav). “É uma coisa que a gente não consegue entender. Como alguém quer destruir isso?” 

O método destrutivo

Amazônia Real teve acesso às notas técnicas que basearam a orientação do Ministério Público Federal (MPF), que mobilizado por denúncias de ribeirinhos recomendou, no dia 9 de março, a suspensão da licença prévia concedida pelo Ibama para a derrocagem do Pedral do Lourenço. Foram encontradas inconsistências e falhas nos estudos apresentados ao órgão licenciador. Nas notas técnicas, os pesquisadores condenaram o EIA/Rima apresentado pelo Dnit ao  Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 

“O que há de mais chocante neste projeto é que eles escolheram o pior método: o mais barato e o mais prejudicial para o meio ambiente e para a população”,  afirma Simone Pereira, pesquisadora responsável pelo Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam), da Universidade Federal do Pará.

Pedral do Lourenço, rio Tocantins, Pará . Foto: Ronaldo Macena/ Divulgação

A derrocagem é uma técnica da engenharia para retirar ou destruir pedras ou rochas submersas, que impedem a plena navegação. Já a dragagem consiste no alargamento de canais de acesso do rio Tocantins. Essas obras se estenderão entre os municípios de Marabá e Baião, afetando um número de comunidades tradicionais e originárias que não foram quantificadas até o momento. O que se sabe é que existem 19 comunidades nas imediações do Pedral do Lourenço, potencialmente afetadas pela hidrovia do rio Tocantins.

“Que explosivos são esses? Quantas toneladas serão utilizadas? Quais os impactos disso para a qualidade da água e do ar? Eles não dizem”, questiona a professora Simone Pereira, com mais de 30 anos de pesquisa sobre a qualidade da água na Amazônia. Ela foi autora de um dos relatórios, analisados pelo MPF para basear a recomendação.

Em seu relatório técnico, Simone Pereira explica que o processo de dragagem irá aumentar a turbidez da água, podendo colocar em suspensão elementos químicos tóxicos, “prejudiciais para ictiofauna” (peixes) e para os seres humanos, que são o topo da cadeia alimentar. 

“O nome deste fenômeno bioacumulação. Os peixes serão contaminados com as substâncias e quem se alimentar dele também será contaminado. E, neste caso, com maior concentração por conta da biomagnificação ou acumulação desses elementos”, comenta a professora.

Ela explica ainda que os sedimentos (o fundo) do rio Tocantins, podem conter elementos tóxicos vindos de atividades de mineração na região de Carajás e ainda do garimpo. “Quando você remove esse sedimentos que está imobilizado alí, é como se você espalhasse tudo o que tem nele no rio. E ali você tem de tudo, inclusive metais tóxicos de mineração.”

Impactos da hidrovia no rio Tocantins

Em 2017, o site oficial do Ibama chegou a projetar que em 2025 estarão circulando cerca de 20 milhões de toneladas pela hidrovia e que a previsão de investimentos na fase inicial das obras, até 2021, era de cerca de 520,5 milhões de reais. Três anos antes, o Ibama emitiu o termo de referência para o estudo ambiental do projeto “Via Navegável do Rio Tocantins” (VNT), cuja gestão e execução cabem ao Dnit.

Segundo dados do MPF, apenas em 2018 o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) foram apresentados ao órgão licenciador. E, desde que chegou ao Ibama, pelo menos quatro pareceres técnicos foram produzidos pelos fiscais, apontando incompletudes, erros e ausências no documento, levando-os à conclusão de que os estudos eram insatisfatórios.

Apesar das indicações dos técnicos do órgão, contrários à obra nos moldes projetados, o Ibama emitiu a licença prévia para a derrocada do pedral. A estranha decisão contrariou cientistas que se debruçam sobre as especificidades e os potenciais impactos da hidrovia no rio Tocantins. As comunidades questionaram não terem sido informadas devidamente sobre o empreendimento, sobre os métodos e nem completamente sobre os impactos das obras. 

O Ibama tem um prazo de 30 dias, que expira em 9 de abril, para se pronunciar sobre a licença prévia. O MPF também considerou a legitimidade da Consulta Prévia Livre e Informada das comunidades tradicionais, nos moldes estabelecidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. (OIT), que vem sendo fortemente questionada pelas comunidades.

“Eles fizeram audiências públicas aqui, mas isso não é consulta prévia. Se eles não sabem a diferença entre uma coisa e outra a gente mostra pra eles”, pontua a liderança ribeirinha Anderson dos Santos.

Suspensão da licença prévia

Amazônia Real tentou por três vezes contato com o Ibama para saber quais foram as prerrogativas que levaram o órgão a validar a licença prévia para que o Dnit prosseguisse com as próximas etapas da obra. A reportagem também questionou os motivos que levaram o Ibama a desconsiderar os pareceres dos próprios técnicos do instituto sobre a inviabilidade do empreendimento, considerando as lacunas apresentadas pelo EIA/Rima. 

A reportagem também procurou o Dnit para saber o posicionamento do órgão federal sobre a recomendação do MPF e sobre as obras. Em nota, o Dnit diz que “a Autarquia não emite licenças ambientais, esta responsabilidade, no caso do Pedral do Lourenço, é do Ibama” e “segue elaborando os estudos necessários para a obtenção da Licença de Instalação e cumprimento das devidas condicionantes ambientais” do empreendimento.

Cerca de 35 comunidades quilombolas que serão afetadas. Foto: Ronaldo Macena/ Divulgação

“Existem cerca de 35 comunidades quilombolas que serão afetadas pela  destruição dessas obras no rio Tocantins. Elas vivem da pesca e possuem relação ancestral com esse rio”, explica Raimundo Magno, coordenador de projetos da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu).

Magno, doutorando em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), afirma ainda que “não dá pra limitar os danos aos quilômetros descritos no projeto do empreendimento. O rio é um ecossistema complexo e qualquer mudança nessa estrutura, abala todo o resto”. Para  ele, nenhuma comunidade da região tocantina, que se estende até Barcarena, estará livre dos prejuízos das obras da hidrovia do rio Tocantins.

Fonte: Amazônia Real

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