Por: Mariana dos Reis
doutoranda em educação pela Uerj
professora do Instituto Benjamin Constant
militante anti racista e feminista interseccional
“ Sou Zezé, Sou Leci, Mercedez, Batista, Edinanci”. Este é o verso de uma canção “ Pra Matar Preconceito” que virou hino entoado pelas mulheres freqüentadoras de diversas rodas de samba espalhadas pelos territórios do Rio de Janeiro. A composição de Manu Cuíca e Raul de Caprio se traduz num grito de libertação das mulheres negras neste espaço, abordando temáticas contundentes como: racismo estrutural, objetificação do corpo da mulher negra, estética preta como empoderamento e visibilidade de heroínas negras e figuras ancestrais na história.
Ainda não se sabe ao certo a origem histórica precisa do samba pois o estados da Bahia e Rio de Janeiro duelam esta disputa há décadas. No entanto, o papel das mulheres neste universo para que o gênero musical pudesse continuar existindo nos espaços pós- abolição até os tempos atuais é um elemento inquestionável.
Mas de onde começa historicamente a inserção das mulheres no reduto do samba?
Desde os tempos da” Belle Époque” no início do século XX, a elite do Rio de Janeiro passou a valorizar a cultura eurocêntrica, em especial advinda de Paris( França) e considerar o “ ´popular” e genuinamente brasileiro como subcultura. O processo de higienização social atingia significativamente a cultura e assim eram proibidas danças e crenças populares como o Candomblé nas ruas. Desta maneira, o samba foi associado como música de marginais, delinquentes ou pessoas da chamada “ vadiagem”.
Entretanto, as “tias” foram personagens fundamentais que construíram verdadeiros “ quilombos” de resistência nas suas moradias. No quintal de Tia Ciata, coração do centro da cidade, juntavam-se moradores da “Pequena África” que cantavam e festejavam sambas de roda. Em1916, foi composto na sua casa o primeiro samba registrado da história (a música “ Pelo telefone” de Donga).Frequentaram sua casa, figuras como Pixinguinha, Joao da Baiana e Vila Lobos. Ciata não só era uma grande anfitriã e cozinheira como importante “articuladora política”, além de seu marido ter sido chefe da polícia, o que facilitava o diálogo com a instituição. Quando o samba era proibido em alguns espaços ou sambistas perseguidos por ações da Polícia Militar, a mesma utilizava de seu prestígio social e credibilidade entre as autoridades da cidade para impedir qualquer tipo de criminalização. Tia Ciata desembarcou no Rio de Janeiro aos 22 anos, durante a diáspora baiana na cidade no século XIX com vestimentas de baiana e sobrevivia vendendo quitutes .Tornou-se assim , matriarca do samba no país e hoje também símbolo do feminismo negro.
Assim, esta “ tias” baianas que migravam para o Rio de Janeira foram eternizadas até os tempos atuais no cenário do samba.Elas foram surgindo e incorporando comportamentos “ matriarcais” neste reduto majoritariamente masculino. O papel social delas seja em escolas de samba ou rodas construíram/constroem poderosas redes de sociabilidade e comunicações sócio-políticas. A ideia da reunião da organização dos encontros de maneira circular, do acolhimento através da comida e do afeto referendou esse parentesco emprestado de alguém que não é mãe mas muito próximo a você. Bom enfatizar que historicamente, as mulheres negras tiveram muitas vezes a formação de suas famílias negadas, predominando o interesse dos senhores em satisfazer seus desejos sexuais além de incorporá-la ao ciclo reprodutivo da família branca. No entanto, já é habitual ao coletivo de mulheres negras no samba assim como em outros espaços da cultura, agregar parentescos a pessoas próximas que lhe agreguem afeto.
Mas quando as mulheres começam a se afirmar neste cenário musical como interpretes e compositoras?
As fontes históricas até hoje apontam que Clementina de Jesus foi a primeira cantora feminina pública a ocupar o espaço do samba. Com sua voz rouca e grave, “Quelé”( apelido destinado por colegas) possuía uma grande herança africana embora tivesse tido formação cristã. Nascida em Valença em 1901 e neta de escravas, Clementina revolucionou o samba após ter sido escolhida pelo produtor Herminio Bello de Carvalho. Só foi revelada aos 63 anos e a partir daí, fez ecoar nos palcos a ancestralidade africana. Trabalhou como empregada doméstica a maior parte da vida. Expressou em suas músicas, a luta contra o preconceito racial e machismo. Morreu em 1987 com 86 anos de idade por problemas cardíacos. Como muitos artistas do samba, morreu pobre. Janaina Marquesiani, uma das autoras do livro “ Quélé, A Voz da Cor” afirma: “Além de Clementina representar essa riqueza cultura tão grande, ela ainda traz as dificuldades de ser negra e pobre. Ela carrega a verdadeira essência do povo mestiço e negro e tudo que o Brasil é”( BRASIL DE FATO, 2018)
Outro grande ícone conhecida como “Primeira Samba do samba” foi Dona Ivone Lara. Nasceu em 1921 no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Tendo enorme educação musical sofisticada recebida de sua família desde pequena além ter aulas de canto orfeônico no semi-internato Orsina da Fonseca, a mesma se destacou grande musicista desde pequena. Na contramão do machismo da época, enfrentou repressão do marido que a proibia de cantar, rejeição inicial nas rodas de samba além de ter de conciliar a sua vida de enfermeira e assistente social. Foi fiel parceira da doutora Nice da Silveira, atuando na luta anti manicomial. Ingressou na ala dos compositores do Império Serrano em 1965. A partir da década de 70, passa a ser reconhecida por ícones da MPB que mais tarde gravam músicas como “Sonho Meu”( Maria Bethânia, Gal Costa) “ Acreditar”( Caetano Veloso) e “ Alguém me avisou” ( Maria Bethânia e Caetano Veloso). Nos anos 2000 conheceu vários países da América do Sul, Europa e África. Morreu em 2017 e no ano passado, contou com a homenagem de sua biografia pelo musical “Dona Ivone Lara: um sorriso negro” .
Mas ao longo da história desta cultura símbolo do Brasil, várias outras grandes artistas se destacaram como: Beth Carvalho, Alcione, Leci Brandão, Jovelina Perola Negra e a contemporânea Tereza Cristina.
Na última década, diante da evolução dos papéis femininos da sociedade e propagação dos debates relativos ao feminismo negro, mulherismo e trocas coletivas entre mulheres, algumas cantoras negras vem se tornando referências desta nova geração das rodas freqüentadas por mulheres e outras fizeram história nas rodas de samba.
Como estas mulheres negras se descobriram no cenário do samba? Será que elas sofreram ou ainda sofrem preconceito?
A cantora Nina Rosa (36 anos) se remete ao período de escolarização em que foi determinante para influenciá-la neste universo “Eu tive música na escola e existia uma professora que ensinava música africana e indígena. Isso foi muito importante na minha formação. Em 2000, me profissionalizei e integrei um grupo em Vila Isabel, o “ Samba de Maria”
Ao abordar o assunto referente a existência ou não de preconceito com as mulheres no samba, a mesma reflete o tema e faz uma revelação:
“ Enfrento preconceito até hoje. Até ontem enfrentei… Na Mangueira enfrentei porque não pude entrar no carro de som deste ano, porque sou mulher, porque é complicado alterar o som que é para compatibilizar com a voz de outros cantores…Num show da Elza Soares que pude abrir este ano, minha equipe era só de mulher preta. Nós mulheres temos que estudar e correr atrás porque estamos na luta , temos vontade e com a cultura a gente transforma!”
A cantora Marcelle Motta( 33 anos) lembra que era roqueira na época da adolescência e o encantamento do universo veio com a vivência nas rodas: “Quando comecei a cantar profissionalmente, foi que me envolvi de fato com o samba. Eu tinha 20 anos na época.Comecei a freqüentar as rodas de samba e me apaixonei”
Sobre a existência ou não do preconceito, Marcelle é categórica na sua opinião: “ O que acontece muito em todas as rodas de samba é que se você senta para cantar acompanhada de outros cantores homens, se você não se impor, você é atropelada e não consegue cantar. É como se você não existisse ali!”
Já a cantora Simone Costa( 42 anos) relembra que as origens familiares e relações afetivas foram determinantes para inseri-las neste universo:”Minha família é de sambistas. Meu irmão que foi assassinado, era de um grupo famoso chamado “Fora de Série” na década de 80. Cresci vendo meu pai ouvindo Cartola e Bezerra da Silva na vitrolinha de casa, bebendo cerveja. Ao me tornar cantora, foi todo um processo… Eu fui casada com um músico e ele me incentivou muito. Ele arranhava instrumentos de percursão e eu cantava. Meus amigos me incentivavam e quando vi, já estava com 4 ou 5 músicas e os amigos me chamaram para dar canja”
Sobre as questões envolvendo preconceito, Simone esmiúça as facetas do machismo contemporâneo: “O machismo é muito estrutural dentro do nosso país. Dentro da nossa sociedade. Por isso, existe uma resistência masculina. Quando você chega na roda, tem que fazer de um jeito onde não ameace “os caras” e você tem que fazer duas vezes mais o que já fazem. E tem que ser guerreira porque existe esse machismo estrutural que é resquício do patriarcado e da masculinidade tóxica.Mas as coisas vem mudado diante do empoderamento feminino e eles tem medo de serem expostos das redes sociais”
As três da nova geração de sambistas fazem parte do projeto “ É preta” encabeçado também pela consagrada cantora Marina Iris e tem como objetivo destacar a visibilidade das mulheres negras no samba e levantar temas sociais cotidianos a luta cotidiana das mulheres trabalhadoras, negras e LGBT.
Vera Lúcia Lemos, a “Verinha do Cavaco”, veterana na cena do samba e fundadora do Negras Raízes, um dos grupos de mulheres mais antigos do Rio com aproximadamente 20 anos dá o seu parecer com relação as questões envolvendo preconceito com as mulheres no samba em tempos atuais: “Não tenho problemas com grupos de mulheres. Agora grupos de homens, se não me conhecem, não me chamam.Eu acho que hoje em dia ninguém vai pensar que as mulheres não vão tocar, fazer vergonha… Mas que eles não gostam, não gostam...”
Em suma, a força ancestral de Clementina, Jovelina e Dona Ivone permanece seja na nova geração ou nas mulheres veteranas no samba. Segundo a análise de todas, falta a representatividade e visibilidade da mulher negra sambista seja nas rodas, na industria cultural e na mídia. É preciso desconstruir assim, padrões de objetificação feminina, da mulher como personagem coadjuvante ou como “ cota” de aceitação social nos espaços.O enredo campeão da Mangueira em 2019 relembra que chegou a vez de “Ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. Que estas mulheres do samba possam contar suas verdadeiras narrativas, amenizando as dores diárias mas celebrando também as alegrias, contrariando assim, os interesses do patriarcado, da elite brasileira e da branquitude.
Viva o dia nacional da mulher sambista!
Mariana dos Reis é doutoranda em educação, professora do Instituto Benjamin Constant. Militante anti racista e feminista interseccional
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