*Matéria escrita com Cipriano Jr.
Dia Nacional das Histórias em Quadrinho ou Dia do Quadrinho Nacional, o 30 de janeiro foi escolhido em homenagem a publicação da considerada primeira obra do gênero, em 1869, por Angelo Agostini – “Impressões de uma viagem à Corte”. Um dos grandes expoentes desta arte na atualidade, Marcelo D’Salete também trata do Brasil Colônia em algumas de suas obras, mas sob registro completamente diferente do olhar dominante no século XIX e, não raro, atualmente.
“Quando eu começo a fazer quadrinhos, de certo modo já havia o interesse de explorar personagens e universos em grande parte negros e periféricos também, e falar dessa grande cidade e dessa grande engrenagem a partir da periferia. São quatro livros até agora, os dois primeiros são mais contemporâneos (“Noite Luz” e “Encruzilhada”); os últimos (“Cumbe” e “Angola Janga”) já são falando sobre o Brasil colonial, sobre a população negra, sobre os traços culturais desses grupos e falando sobre os conflitos desse tipo de personagem nesse contexto escravagista de mais de três séculos atrás”, explica o quadrinista.
No ano passado, ele foi o vencedor do Eisner, o maior prêmio de Quadrinhos do mundo, com “Cumbe”. Ainda em 2018, também conquistou o Jabuti da categoria com “Angola Janga”. D’Salete destaca nesta entrevista algumas de suas referências e a visibilidade que o reconhecimento da crítica acrescenta ao setor, incentivando novos autores e a utilização desta linguagem para contar boas histórias. Além disso, percebe-se um movimento do mercado nacional para o diálogo desta com outras artes, como o cinema.
“Tungstênio (de Marcello Quintanilha, foi publicado em 2014 e levado à telona pelo diretor Heitor Dhalia em 2018) é uma grande obra, tanto no formato de histórias em quadrinhos, quanto no formato de cinema, acho uma obra importantíssima para vermos hoje. Há algumas produtoras que estão interessadas em transformar obras minhas (as duas histórias premiadas ano passado) em cinema, em audiovisual. Estamos conversando sobre isso, vamos ter novidades no futuro”, comenta o autor.
A representatividade, cobrança comum ao falarmos sobre a produção cultural em geral, é uma questão atual no cenário brasileiro dos quadrinhos: uma edição recente da “Turma da Mônica” apresentou, pela primeira vez, uma família negra. A abordagem é vista positivamente, mas com cautela. Afinal, não se trata apenas de inserir personagens, mas contextualizá-los e lhes construir vida.
“Eu não li esse último trabalho, mas posso falar um pouquinho a partir de um outro livro, que é o “Jeremias”, feito pelo Rafael (Calça, roteirista) e pelo Jefferson (Costa, desenhista), que é um ótimo trabalho de quadrinhos, texto muito sensível e uma arte espetacular. Eles fizeram isso a partir de um personagem de dentro do universo do Maurício de Sousa que era, no mínimo, terciário, e criaram uma história que anteriormente não existia. Eu achei bem interessante. Claro que o nome Maurício de Sousa tem uma repercussão grande, é uma grande empresa, a maior empresa de quadrinhos aqui no Brasil com esse formato, é interessante a gente disputar também esse tipo de espaço dentro desse tipo de narrativa, já que são obras que chegam a um tipo de público muito grande, mas eu acho também importante verificarmos qual é o tipo de representação que está sendo feita ali. Não é porque há personagens negros numa narrativa negra que isso de alguma forma reflita esse tipo de realidade”, analisa Marcelo D’Salete.
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Qual a sua relação com história em quadrinhos? Lê desde sempre?
Meu contato com história em quadrinhos é bem antigo, desde três, quatro, cinco anos de idade. De certo modo, aprendi a ler muito por influência das histórias em quadrinhos. Além de criar histórias, a minha relação primeira sempre foi com o desenho.
Quais são seus quadrinhos preferidos?
Tem vários, mas poderia falar que inicialmente, quando eu comecei a fazer histórias em quadrinhos, na época da adolescência, alguns quadrinhos que me marcaram bastante foram os da Laerte, como os “Palhaços mudos”, “Os piratas do Tietê”, uma história curta que ele fez chamada “A insustentável leveza do ser”, obras do Lourenço Mutarelli, Miguelanxo Prado, e diversos outros.
Em que momento você começou a fazer histórias em quadrinhos?
Comecei a fazer histórias em quadrinhos no final da década de 1990 e comecei a publicar histórias em quadrinhos no começo dos anos 2000, entre 2002 e 2003, inicialmente na revista Quadreca e depois na revista Fronte. Esta última já tinha um formato de livro e se destinava a livrarias. Era uma tiragem menor, cerca de 1.500 exemplares, formato muito bonito, impressão de alta qualidade, com um trabalho editorial bem interessante porque era o próprio grupo de artistas que discutia as histórias que iriam entrar ali. Isso me marcou bastante.
Você começou já escrevendo e desenhando sobre a história do povo preto ou isso foi aparecendo no seu trabalho aos poucos?
Isso sempre foi uma questão para mim, bem cedo, muito por influência do rap no final de 1980 e começo de 1990, e depois, também, um pouco pela literatura e pelo cinema eu percebia que existia algo para ser abordado sobre esse universo e que eu via muito pouco nos quadrinhos. Quando eu começo a fazer quadrinhos, de certo modo já havia o interesse de explorar personagens e universos em grande parte negros e periféricos também, e falar dessa grande cidade e dessa grande engrenagem a partir da periferia. São quatro livros até agora: “Noite Luz”, “Encruzilhada”, “Cumbe” e “Angola Janga”. Os dois primeiros livros são mais contemporâneos, falando de grande cidade e dos conflitos dentro dessa grande cidade; os últimos são falando sobre Brasil colonial, sobre população negra, sobre os traços culturais desses grupos e falando sobre os objetivos, interesses, conflitos desse tipo de personagem nesse contexto colonial e escravagista também do Brasil, de mais de três séculos atrás.
Se aconteceu aos poucos, qual foi o ponto de virada?
De certo modo,diria que na minha trajetória, o ponto de virada foi a partir do livro “Cumbe”. Foi quando as pessoas ficaram conhecendo os trabalhos que eu estava desenvolvendo.
Recentemente, o Maurício de Sousa fez uma edição da Turma da Mônica com a primeira família negra. O que representa isso? Como podemos ler essa estreia ou esse ineditismo? Qual (ou quais) o papel da arte, e do quadrinho especificamente, na construção da identidade do povo preto?
Eu não li esse último trabalho falando sobre uma família negra, mas posso falar um pouquinho a partir de um outro livro, que é o “Jeremias”, feito pelo Rafael e pelo Jeferson, que é um ótimo trabalho de quadrinhos, texto muito sensível e uma arte espetacular. É uma obra que fala de uma criança passando por uma situação de discriminação e racismo na escola, mas muito bem desenvolvida. Eu gosto deste tipo de narrativa, acho que foi muito bem realizada. Eles fizeram isso a partir de um personagem de dentro do universo do Maurício de Sousa que era, no mínimo, terciário, e criaram uma história que anteriormente não existia. Eu achei bem interessante.
Claro que o nome Maurício de Sousa tem uma repercussão grande, é uma grande empresa, a maior empresa de quadrinhos aqui no Brasil com esse formato, é interessante a gente disputar também esse tipo de espaço dentro desse tipo de narrativa, já que são obras que chegam a um tipo de público muito grande, mas eu acho também importante verificarmos qual é o tipo de representação que está sendo feita ali. Não é porque há personagens negros numa narrativa negra que isso de alguma forma reflita esse tipo de realidade. Tudo isso é muito complexo, mas é uma discussão importante pra gente aprofundar, porque cada vez mais a gente vai se deparar com esse tipo de personagem e de discussão, é importante estar atento a isso.
O que mudou na sua vida após vencer o Eisner? Há diferença no reconhecimento do seu trabalho dentro e fora do país? Por qual motivo?
O Eisner Awards é um prêmio americano da indústria dos quadrinhos. O “Cumbe” foi publicado inicialmente no Brasil em 2014 e nos Estados Unidos, em 2017, o que fez com que um ano depois ele fosse selecionado e premiado. Foi uma novidade muito grande, eu tinha dúvida se ganharia ou não, mas só de concorrer já era importante. É um prêmio que, querendo ou não, chama atenção para esse tipo de publicação e esse tipo de narrativa, e espero que influencie outros artistas a se importarem e se interessarem mais em fazer narrativas sobre esse tipo de universo. Existem boas histórias que merecem boas histórias em quadrinhos. E é lógico, o prêmio deu uma projeção muito grande aos livros que eu venho fazendo até então.
Como você avalia a evolução do seu trabalho? E como você avalia a produção de histórias em quadrinhos hoje dia no Brasil?
Eu vejo o meu trabalho de uma forma relativamente linear, uma continuidade, o desenvolvimento de certas preocupações que foram aparecendo bem antes. Essa tentativa de falar sobre nosso país, nossa região e sobre essa diáspora africana no Brasil, falar como se deram esses contatos, essas zonas de disputa, de conflito, de busca, de autonomia e de liberdade. E isso acontecendo tanto no passado quanto no presente também.
Como vê a viabilidade dos quadrinho no país hoje diante das alegadas dificuldades do mercado de livros no Brasil?
Hoje, no Brasil, a gente tem uma produção artística muito interessante, muito rica, feita por diferentes artistas. Muitos deles estão preocupados em falar sobre uma realidade brasileira, uma realidade bem local, mas também há muita gente interessada em experimentar, em termos de formato e de linguagem. E é um quadrinho que cada vez mais está sendo publicado e reconhecido fora do país.
Imagino que seja importante que essa produção continue, acredito que seja muito importante também que exista fomento do governos tanto Federal, Estadual e Municipal e iniciativa para esse tipo de produção.
Quadrinho é um meio viável. Claro que não é uma coisa rápida, algo que você vai ter retorno imediato, tem que insistir muito nesse trabalho. Às vezes é um retorno que você vai ter num médio e longo prazo, mais de cinco, dez anos, mas é algo que muita gente faz também pela paixão por esse meio, por esse tipo de linguagem, que é algo extremamente complexo, mas que você precisa de poucos materiais, de poucas pessoas para conseguir um ótimo trabalho circulando na rua com outras pessoas vendo. O que é cada vez mais importante, ter espaços de circulação de ideias.
Existem diversas formas de criação de história em quadrinhos e de produção também. Muitos se especializam na produção de tiragens menores e também em auto edição, indo em feiras e eventos. Muitos artistas que têm retorno a partir disso. Há vários modos viáveis.
Como vê esse início de relação no Brasil entre os quadrinhos e o cinema (Doutrinador e Tungstênio, por exemplo)? É algo que pensa? Tem algum projeto neste recorte?
Tungstênio é uma grande obra, tanto no formato de histórias em quadrinhos quanto no formato de cinema, importantíssima para vermos hoje. Há algumas produtoras que estão interessadas nos livros “Cumbe” e “Angola Janga”, em transformar essas obras em cinema, em audiovisual. Estamos conversando sobre isso, teremos novidades no futuro.
Olhando pro mercado, você vê espaço para mais artistas como você, com o seu conteúdo e sua abordagem?
Sim, com certeza há quadrinistas que trabalham com esse tipo de questão e que façam esse tipo de discussão. Nós temos poucas obras que abordam essa temática. Temos, sim, bons artistas fazendo isso, mas acredito que há ainda um universo enorme de narrativas e de histórias para serem contadas. E com certeza é bem provável que nos próximos anos teremos ainda mais obras falando sobre isso. Percebo isso a partir das conversas que tenho com novos quadrinistas que estão planejando coisas semelhantes, que têm interesse nessa área, falando sobre história, sobre arte e sobre cultura negra periférica. É importante ocupar este espaço.
Possui obras prontas ou em preparação?
No momento não tenho nenhuma obra pronta, estou estudando, começando a fazer alguns esboços de roteiro para um próximo livro, que deve ser algo mais contemporâneo. Algo que ainda está em estudo.
*A entrevista foi feita a partir da transcrição de áudio enviado por e-mail.