Cemitério de escravizados recebem reconhecimento histórico na Bahia

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Um cartaz fixado por ativistas em uma parede da Rua Nazaré, em Salvador, Bahia (BA), afirma que há um “Cemitério desaparecido a 250 metros”. O muro que exibe essa mensagem foi escolhido no Dia de Finados do ano de 2024, e está situado próximo ao Campo da Pólvora, uma praça crucial na capital baiana. Ali existiu, por cerca de 150 anos, o cemitério do Campo da Pólvora, que foi o primeiro cemitério público, em Salvador.

Nas proximidades, encontra-se a Pupileira, um complexo histórico pertencente à Santa Casa de Misericórdia da Bahia, onde funciona um centro de memória, um popular espaço cerimonial, uma faculdade, e a Sede Administrativa da Instituição. O local é voltado para a lembrança das pessoas que foram sepultadas ali, além de ser também uma homenagem, perante o apagamento histórico sofrido pelo local.

Silvana Olivieri é pesquisadora e doutoranda em Urbanismo,
na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foto: Vitor Serrano/BBC

Esse local sepultou pessoas marginalizadas, com destaque para escravizadosafricanos de diversas origens e seus descendentes, assim como pobresindigentesprisioneirossuicidasinsurgentes sentenciados à morte. A narrativa desse cemitério chega ao fim em maio de 1844, quando ele foi fechado e substituído pelo Campo Santo, situado a aproximadamente 3 quilômetros de distância.

Estima-se que cerca de 100 mil pessoas foram enterradas no Campo da Pólvora. Entre elas, estavam figuras históricas, como líderes da Revolta dos Búzios (1798 a 1799), que lutavam pela independência da Bahia, e pelo fim da escravidão, além de líderes da Revolta dos Malês (1835), liderada por escravizados, em sua maioria muçulmanos, em busca de liberdade religiosa e abolição da escravidão.

“Quiçá tenhamos ali o maior banco de DNA de pessoas escravizadas do mundo e isso nos traz um resgate também da nossa ancestralidade,” afirma Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia (MP-BA).

No entanto, após seu fechamento, o cemitério do Campo da Pólvora “sofreu um apagamento histórico, desaparecendo tanto da paisagem como da memória da cidade”, segundo palavras de Silvana Olivieri, pesquisadora e doutoranda em Urbanismo, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Após 180 anos da desativação, Olivieri, o professor Samuel Vida, da Faculdade de Direito de São Paulo (USP), e um grupo de arqueólogos, tomaram a iniciativa de reexaminar essa história.

O cemitério foi fundado no século XVIII pela Câmara Municipal, que o administrou por aproximadamente 50 anos. O nome “cemitério do Campo da Pólvora” refere-se à sua localização,nas imediações da Casa da Pólvora, que além de servir como depósito de explosivos, também atuava como fortificação militar para proteger a cidade. Em torno de 1740, a administração do cemitério foi transferida para aSanta Casa, até ser desativada em 1844.

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A Instituição vendeu o terreno em um movimento de compra e venda, mas adquiriu-o novamente em 1862, junto a uma área maior, que atualmente é de sua posse: o Asilo dos Expostos, que hoje é conhecido como Pupileira. O nome atual remete aos “pupilos”, visto que ali funcionou um internato, orfanato e creche.

Além disso, o Hospital da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, localizado a cerca de 1 quilômetro do cemitério, também foi o lar da primeira roda dos expositores do Brasil. Esse dispositivo, que originou-se na Europa, era uma estrutura rotativa em Instituições de caridade que permitia a entrega anônima de bebês abandonados.

Quando a Santa Casa reassumiu o terreno, em 1862, a documentação registrada indicava que um cemitério já existia naquele local, o que não surpreende, já que a própria Instituição havia gerido o espaço anos antes.

“Pela frente da rua do Campo da Pólvora tem vinte e seis braças e oito palmas, começando da quina do muro do antigo cemitério, e seguindo para o lado do quartel de Santo Antônio da Mouraria até preencher aquele espaço”, diz parte da escritura, do século 19, à qual a BBC News Brasil teve acesso.

O documento do século XIX foi acessado pela BBC News Brasil. Entretanto, atualmente, não há qualquer sinalização, ou referência, à existência do cemitério na área, apesar de sua relevância para a história local, um fato que intrigou a pesquisadora Silvana Olivieri. “Minha pergunta era onde estava esse cemitério e como ele desapareceu da cidade”, diz ela, que fez sua tese de doutorado sobre o tema.

Por outro lado, Rosana Souza, que coordena as iniciativas de Patrimônio e Memória Cultural na Santa Casa de Misericórdia da Bahia, argumenta que não houve “desaparecimento”“Não existia, portanto, esse apagamento proposital, porque não existia nem esse valor moral de que isso precisava ser acobertado”, afirma Souza.

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Rosana defende que, na época, a questão da escravidão não apresentava um “dilema moral”. Para os pesquisadores, a falta de localização do sítio configura um apagamento da memória histórica. Com isso em mente, armada com mapas e documentos do século XVIII de Salvador, Olivieri mergulhou em registros históricos para tentar identificar o possível contorno do antigo cemitério.

De acordo com suas investigações, parte da história da cidade permanece oculta sob algumas camadas de solo no estacionamento da Pupileira. Com as suspeitas levantadas, em julho de 2024, Olivieri e Samuel Vida enviaram um dossiê ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), solicitando apoio Institucional para a realização de uma pesquisa arqueológica no local.

Ainda no ano passado, o Iphan mediou duas reuniões entre os pesquisadores e membros da Santa Casa da Bahia, que, conforme Olivieri, não estavam respondendo às solicitações formais do Iphan para realizar o estudo no terreno“A Santa Casa se recusou a responder ao Iphan sobre a autorização das escavações durante três meses”, disse Olivieri.

No final do ano, o Ministério Público da Bahia (MP/BA) foi contatado para ajudar nas negociações. O MP/BA organizou mais duas reuniões entre os pesquisadores e a Santa Casa, uma em 9 de janeiro, e outra, que apresentou o Termo de Cooperação para permitir as escavações, 20 dias depois. A questão do tempo era crucial para os arqueólogos.

Eles desejavam realizar as escavações antes do final de fevereiro, para evitar a chegada da temporada das chuvas na Bahia, que começaria logo em seguida. O Termo de Cooperação foi assinado em 26 de março, mas as escavações só tiveram início no dia 14 de maio. Assim, o que os arqueólogos pretendiam evitar acabou se tornando inevitável.

“Tínhamos dez dias para realizar os estudos no solo, mas perdemos os dois primeiros dias devido à chuva histórica que caiu em Salvador”, conta Jeanne Dias, arqueóloga e coordenadora da pesquisa. Conforme ela mencionou, “a Casa de Eventos da Pupileira, e o estacionamento, são iniciativas comerciais que ajudam a financiar as obras filantrópicas da Instituição.”

Por esse motivo, era necessário encontrar uma maneira que não fosse prejudicial ao funcionamento do estacionamento, que atende à Santa Casa, à Faculdade, à Caixa Econômica Federal e ao Cartório de Registro. Assim que as escavações tiveram início, os pesquisadores validaram suas suspeitas. 

Jeanne Dias e Luiz Pacheco,
compuseram parte da equipe de escavação.

Foto: Vitor Serrano/BBC

“O primeiro vestígio encontrado foi um dente”, afirmou Luiz Antônio Pacheco de Queiróz, coordenador de campo da pesquisa. “Como estava preservado, com a raiz, isso foi um forte indício de que aquele lugar era um cemitério”

No material, também foram encontrados pedaços de louças, vidros e azulejos, que ajudaram a indicar o espaço de tempo que aquele lugar existiu. Usando uma pinça, ele apresentou uma pequena conta, semelhante a uma miçanga, a qual, segundo o especialista, fazia parte de um conjunto fúnebre, utilizado nas cerimônias de sepultamento de integrantes do candomblé.

Existem diversos relatos históricos que atestam a presença do cemitério, como os do médico, e historiador, Brás do Amaral. Ele menciona que os corpos eram deixados em torno do cemitério durante a noite, para que a Santa Casa os recolhesse e desse sepultamento no dia seguinte, sendo esses serviços conhecidos como “sepultamentos de caridade”.

“Era um local de limpeza e descarte social, não de despedidas e acolhimento”, afirma a arqueóloga, Jeanne Dias. Conforme declarado por ela, na época, as pessoas eram enterradas nas proximidades das igrejas. No entanto, os escravizados eram colocados em valas comuns, sem qualquer cerimônia ou registro. A Santa Casa da Bahia, no entanto, diz possuir pelo menos uma parte desses registros.

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“Temos a documentação dessas pessoas que foram sepultadas neste cemitério, que são os Livros de Banguê”, afirma Rosana Souza. De acordo com ela, os livros informam registros da origem do escravizado, tal como nome e etnia. “Essa documentação pertence à Santa Casa de Misericórdia da Bahia, porque era um serviço prestado por ela”, completou ela.

A própria Instituição revela que esses documentos consistem em uma coleção de 11 volumes, responsáveis por registrarem os sepultamentos de indivíduos escravizados, assim como de pessoas empobrecidas e indigentes, entre os anos de 1742 e 1853.

banguê, referia-se a um serviço de transporte dos corpos, desde o local da morte, até o local do sepultamento. Assim, não é possível garantir que todas as pessoas que constam nos registros tenham sido realmente enterradas no Cemitério do Campo da Pólvora, uma vez que nem sempre as informações sobre o local do sepultamento estão disponíveis.

Em 2009, os “Livros de Banguê” foram contemplados com o Diploma de Memória do Mundo, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A pesquisa chegou ao fim, após os cientistas encontrarem vestígios de ossos humanos, confirmando a presença de um cemitério na área. Dessa forma, o cemitério dos escravizados foi registrado como um sítio arqueológico pelo Iphan, denominado “Cemitério dos Africanos”.

Parte do material encontrado pelos arqueólogos
e pesquisadores. Foto: Vitor Serrano/BBC

Alexandre Coplas, arqueólogo do Iphan, na Bahia, esclarece que, após esse registro, o sítio arqueológico se torna um bem da União. “Nada que afete a sua integridade pode ser feito ali”, afirmou Coplas. “E se for constatado, por exemplo, que o fluxo de veículos do estacionamento vai causar algum impacto no sítio, o estacionamento pode ser retirado de lá”, completou o arqueólogo.

De acordo com uma recomendação do MP-BA, as duas áreas onde os materiais foram descobertos permanecem isoladas, no estacionamento. A Santa Casa afirma que está aguardando um “laudo técnico” sobre as descobertas para decidir sobre os próximos passos no local. Essa revelação incentivou a formação do Comitê para a Salvaguarda de Cemitérios de Escravizados no Brasil.

O comitê inclui outros patrimônios, como o Cemitério dos Aflitos, que foi encontrado em 2018, no renomado bairro construído por imigrantes japoneses da Liberdade, em São Paulo. No local, que atualmente é embelezado por lanternas nas ruas, esteve situado, durante a metade do século XVIII, o espaço conhecido como largo da forca, destinado à aplicação de penalidades a criminosos, especialmente aqueles que eram escravizados. 

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Nas proximidades desse largo, encontrava-se também o cemitério e a Capela dos Aflitos, que ainda permanece de pé, até os dias de hoje. Um caso semelhante é o do Cemitério dos Pretos Novos, localizado no Cais do Valongo, uma área portuária do Rio de Janeiro, que foi descoberto em 1996, e agora integra o comitê. Atualmente, esse espaço abriga uma biblioteca e um memorial.

Da mesma maneira, a arqueóloga Jeanne Dias, responsável pela coordenação da pesquisa, afirma que essa descoberta representa uma chance de abordar uma parte de uma dívida histórica. “O reconhecimento desse local é importante para um processo de reparação histórica”, afirma Dias.

Olivieri acrescenta: “Nossa intenção é retirar definitivamente da invisibilidade e do esquecimento esse sítio de grande valor histórico, arqueológico, cultural e espiritual, propondo ainda a construção de um memorial em homenagem aos seus mortos, a fim de que sejam tratados com a merecida dignidade, honra e respeito“.

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Púrpura Santana

Púrpura Santana

Púrpura é uma multiartista paraibana, escritora, atriz e roteirista, que traz consigo um domínio peculiar sob as palavras.

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