Cabeleireira carioca cria salão especializado em cabelos de diferentes curvaturas: “Consigo cuidar, dar carinho e dignidade”

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Nascida e criada no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, foi dentro da comunidade que Erica Bello traçou seu caminho em direção a um sonho que se tornou realidade: o salão de beleza chamado “As Fadas dos Cachos”, especializado no tratamento de cabelos crespos e cacheados, e voltado para o atendimento de crianças, homens e mulheres negros de forma acolhedora.

Em um bate-papo informal no salão que hoje está localizado em Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, a fada por trás desse empreendimento falou com o Notícia Preta sobre sua trajetória enquanto mulher negra e periférica, o caminho que percorreu até começar a empreender no ramo da beleza e como se sente em trabalhar com cabelos crespos e cacheados. 

Erica Bello, dona do salão “As Fadas dos Cachos” /Foto: Bárbara Souza – Notícia Preta

Ao chegar no salão, em uma das lojas de uma galeria bem na Estrada do Portela – uma das principais vias de Madureira – o que chama mais atenção são as dezenas de certificados que Erica faz questão de deixar pendurados na parede do estabelecimento. Mas um deles se destaca por não ser um registro de aprendizado, e sim de reconhecimento.

Uma Moção de Louvor e Aplausos recebida por ela, em junho de 2022, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, como forma de reconhecimento ao seu trabalho sociocultural no empreendedorismo direcionado a pessoas negras, considerado pela casa parlamentar muito relevante para a comunidade carioca.

“Isso me honra muito. Saber que eu consigo cuidar de pessoas pretas, dar carinho e  dignidade pois elas chegam em um espaço que é delas. Isso aqui é nosso. E foi muito bom sentar no plenário da Câmara e ser homenageada”, diz.

Mas a história de Erica com a indústria do cabelo começou com sua própria relação com os fios e com uma história que passa por complexas relações familiares e raciais. Filha de uma mulher negra retinta e um pai mais claro, e bisneta de italiano – por parte de pai -, Erica diz que o cabelo sempre foi uma questão dentro de uma família de maioria branca. 

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“Minha mãe não se achava aceita na família e aí nasce eu, mais clarinha mas com um cabelo que ia na cintura, bem cheio e volumoso. E aí comecei a passar por aqueles processos de dor e sacrifício de alisamento traumático, e de não ter direito a férias pois estava todo mundo brincando tomando banho de borracha e eu tinha que passar ferro quente no cabelo”, conta.  

Segundo Erica, sua mãe chegou no Rio de Janeiro aos 6 anos, do nordeste, para ser doméstica – trabalhando inclusive na rua em que seu pai morava – e com isso sua relação com aceitação era muito complicada. “Cabelo solto nunca, não podia”. Mas ao começar a se sustentar, Erica passou a buscar outras formas de cuidar do seu cabelo, mas nunca encontrava o que procurava. 

“Toda vez que eu entrava num salão, a única coisa que eles me ofereciam era o alisamento, e isso já não fazia mais minha cabeça, eu queria usar meu cacho. Ou quando eu entrava aceitando até o alisamento, eu percebia os olhares tortos das profissionais. ‘Esse cabelo? Você?`, eram sempre essas perguntas”.

Mas como é obstinada, resolveu cuidar de seu cabelo mesmo sem conhecimento. Foram muitas tentativas e erros, mas Erica estava convencida de que não seria mais constrangida nesses espaços. Na época, trabalhando em grandes empresas, ela conta que precisava preservar sua aparência para se enquadrar nas normas. Após a formatura do filho, decidiu empreender e foi dona de uma confecção de moda praia.

Até que durante a pandemia a possibilidade de trabalhar com cabelos chegou. Com o desânimo na área, e após cuidar do cabelo da própria mãe, um amigo dono de uma barbearia a incentivou a trabalhar cuidando do cabelo de outras pessoas. 

“Vendi meu maquinário completo, e fui fazer meu primeiro curso lá em Petrópolis com os Mestres dos Cachos de São Paulo – Wilson Farias e Willie Mitchel – no circuito da beleza. Dali eu já vim como? Apaixonada!”, conta Erica enquanto passava o tratamento em meus fios. Sentada na cadeira das fadas dos cachos, foi possível entender que ela ama o que faz. 

Depois disso Erica continuou se aprofundando, fez outro curso, e no início de 2021 abriu seu primeiro salão, o “Espaço Erica Bello”, localizado no Piscinão de Ramos, montado no improviso. Conforme o empreendimento foi aumentando, o salão “As Fadas dos Cachos” nasceu, com outras cabeleireiras parceiras, no mesmo ano. 

Após perder o pai, bem na época em que recebeu a Moção de Louvor e Aplausos, o salão ficou um tempo paralisado, também por questionamentos quanto aos números de seu empreendimento. mas Após participar da Expo Favela, decidiu abrir o espaço na favela Parque União, mas infelizmente o lugar não se manteve por conta da violência e das constantes operações policiais. 

“Infelizmente por conta dos problemas que a cidade enfrenta, a segurança pública,  não deu para continuar, e Madureira já era um sonho. Ai eu fiz um curso de empreendedorismo na Braskem, porque tô sempre estudando, e aprendendo a fazer uma planilha de gastos eu entendi que Madureira não era um sonho tão distante. E aqui estamos”, explicou a cabelereira que conta com o auxílio de outras profissionais, uma delas sua filha.  

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De acordo com Erica o início foi complicado por conta das comparações com os profissionais que já estavam no mercado e como conseguira mostrar seu trabalho, mas tudo foi superado. Agora já com seu espaço consolidado, a cabeleireira diz que se sente muito satisfeita com o caminho que está traçando que vai além do salão em si, se estendendo também para levar o seu conhecimento adiante.

“A sensação é de que eu estou no caminho certo e não posso parar. Hoje eu já sou uma instrutora técnica, já dou cursos trabalhando em duas instituições e com uma turma formada totalmente pela Fada dos Cachos”, conta Erica que comanda jornadas técnicas feitas em seu próprio espaço oferecendo certificados para quem conclui a imersão técnica e prática com ela. 

Hoje Erica tem até sua própria linha completa para cabelos de diferentes curvaturas, com shampoo, condicionador, leave in e máscara de tratamento. Mas a cabeleireira que já está estudando lançar a segunda linha que já está em desenvolvimento, pretende alçar voos mais altos no futuro. 

“E eu não quero parar, pois um dos meus próximos projetos é franquear a marca e capacitar mães solo de comunidades e mulheres trans, para que tenham meio de ganho. Que a gente possa ter uma Fada dos Cachos para dar tratamento digno a cada mulher e homem preto crespo e cacheado em todo o Rio de Janeiro e quem sabe, em todo o Brasil”, diz com emoção. 

Impacto nas pessoas negras 

Um lugar de acolhimento e aquilombamento. É assim que Erica Bello quer que pessoas negras vejam o seu espaço, que além de beleza fala também sobre empoderamento, autoestima e fortalecimento coletivo. Para a cabeleireira, o objetivo é que ninguém passe pelo que ela já passou.

“Eu sei que a pessoa vai chegar aqui e eu vou desembaraçar seu cabelo e não vai ter nenhuma outra pessoa te olhando de maneira diferente, que você não vai ficar constrangida pelo volume do seu cabelo”, diz enquanto separa as mechas do meu cabelo para aplicar o creme, com outras mulheres crespas e cacheadas ao meu redor. 

A cabeleireira conta que seu trabalho hoje é feito com base em tudo que ela já viveu. “Foi por conta de todos os olhares que eu vi no passado a vida inteira, de crítica e julgamento. E eu não quero isso para outras pessoas. Foi por conta de ter a testa queimada, a orelha queimada com o pente quente para esticar meu cabelo”. 

O salão oferece uma avaliação feita por Erica antes de começar qualquer um dos tratamentos realizados no salão, que ela garante serem pensados para respeitar tanto os fios quanto as clientes. “A nossa visão aqui na Fada dos Cachos é que a pessoa não precisa passar uma química para o cabelo ficar liso, se ela não quiser. A gente respeita muito a estrutura do cabelo. A gente prioriza a curvatura do fio”. E nesse lugar, Erica espera que mulheres e homens se sintam confortáveis com suas características.

“Eu acho importante que as pessoas se encontrem nos espaços onde elas possam ser elas, sem segurar o volume do cabelo. Então se você tem um espaço onde você pode se cuidar e se identificar tanto com o profissional, já que é uma mulher preta que vai cuidar do seu cabelo, uma mulher cacheada, é muito importante sim, sabe?”, detalha, completando sobre a importância da vivência nessa relação cliente e profissional. 

“Eu também preciso dormir com uma touca de cetim para meu cabelo não amanhecer com muito frizz, não é algo que eu li em um livro, eu vivo isso”, explica Erica que ao final de seus atendimentos costuma dar para suas clientes uma receita com dicas e orientações importantes para continuarem tratando seus fios da melhor maneira possível até retornarem ao salão.

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Crianças negras e a relação com o cabelo

A maior parte dos clientes de Erica são crianças negras, meninas que sentam na cadeira da cabeleireira buscando reconhecer a beleza e a magia dos seus fios. “Eu recebo crianças aqui pedindo ‘Tia pelo amor de Deus cuida do meu cabelo que é duro’ e eu tenho que sentar com elas, conversar e demonstrar que não é assim”, conta, emocionada.

Nesses momentos, a cabelereira usa de alguns métodos para mudar a forma com que essas crianças se vejam. “Eu trabalho com bonecas pretas, pois essas crianças não tem referência. Elas levam todas embora. Eu compro pequenas coroas de plástico e quando eu termino elas saem daqui como princesas”, conta mostrando alguma das bonecas que ainda tem no espaço.

Um dos produtos da linha das Fadas dos Cachos e um das bonecas que Erica Bello entrega para suas clientes mirins /Foto: Bárbara Souza – Notícia Preta

Erica diz que a falta de referência dessas crianças também pode ser vista em casa, já que segundo ela, a maior parte das mães que levam suas filhas no salão possuem cabelo alisado.

“Eu não vejo problema se a pessoa se sente bem assim, mas essas mães precisam entender que elas são referências para as próprias filhas”, diz a profissional, que percebe alguma delas fazendo transição para ajudar as filhas no processo, e descobrindo também sua própria beleza natural.

“O que eu quero vender é que o cabelo dela é lindo, que tem características diferentes mas que é lindo com os cuidados que ele precisa. Eu não vou citar a parte negativa que todo mundo já fala lá fora. Eu não tenho que ser como todo mundo, eu tenho que ser diferente. Eu tenho que que fazer com que ela se sinta a vontade para soltar o cabelo”, diz Erica sobre suas clientes.

Bárbara Souza

Bárbara Souza

Carioca da gema, criada em uma cidade litorânea do interior do estado, retornou à capital para concluir a graduação. Formada em Jornalismo em 2021, possui experiência em jornalismo digital, escrita e redes sociais e dança nas horas vagas. Se empenha na construção de uma comunicação preta e antirracista.

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