Por: Mariana dos Reis
Superação. Expressão que define a trajetória icônica da professora da educação básica da Rede estadual Danieli Christovão Balbi, primeira mulher negra transexual doutora formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conhecida pela maioria das pessoas como Dani Balbi( 30 anos), a mesma dedicou metade de seu tempo em vida a militância do Partido Comunista do Brasil( PC do B) e segundo a mesma forjou-se nos movimentos sociais e coletivo de mulheres em luta, tendo nestes espaços a sua primeira formação política e acadêmica.
Dani defendeu a sua tese de doutorado no dia 9 de agosto de 2019 no Programa de Pós Graduação da Faculdade Letras da UFRJ com uma pesquisa que versa sobre o teatro contemporâneo brasileiro a partir de 1960 com recorte específico no “ drama social”. Este define-se por selecionar argumentos ligados uma esfera de tensões, problemas e soluções sociais históricas. Sob o título de tese “ A subtração do trabalho e do drama social contemporâneo : de black tie a tênis a naique”,a ´pesquisadora dedica-se a analisar as variantes da categoria “ trabalho” no drama social.
Dani Balbi contraria em sua história acadêmica a regra de estatísticas alarmantes quanto os índices de evasão e invisibilidade da população trans na educação regular. Segundo a Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil, 70% das mulheres trans possuem o Ensino Médio incompleto. Coincide com este dado, a informação de que é na fase da adolescência em que a maior parte das pessoas trans iniciam a sua transição . Com isso, enfrentam violências físicas, simbólicas e psicológicas nos espaços educacionais que frequentam, abandonando muitas vezes os bancos escolares. O índice de evasão de travestis e transexuais chega a 82%, resultado que desenha a situação de vulnerabilidade social deste grupo na sociedade. Associa-se a esta questão, a ausência de acolhimento afetivo nos grupos sociais que esta população esta inserida, sendo estas pessoas expulsas de casa, rejeitadas do ambiente de trabalho ou acadêmico. Quando nos deparamos com os índices educacionais das universidades, identificamos a presença infima de apenas 0,02% estudantes trans. A baixa qualificação escolar muitas vezes empurra este grupo social para a dura realidade da prostituição, uma vez que este não consegue se inserir no mercado formal de trabalho. Soma-se a esta triste realidade, a estatística de que o Brasil é o país que mais mata trans no mundo ( 146 travestis ao ano).
Dona de uma voz serena e um olhar expressivo, Dani reforça no seu discurso não somente a importância de políticas afirmativas para a população LGBTQI na sociedade como a necessidade de políticas sociais de reparação para a população negra periférica ( em especial mulheres) e oportunidade de emprego e renda para a juventude. Ao mesmo tempo em que atribui a importância da formação comunista na sua militância, intersecciona em seu discurso aspectos fundamentais para se pensar a realidade brasileira como: gênero, raça e classe. Sendo professora da Rede Estadual de Ensino e assessora parlamentar da deputada estadual Enfermeira Rejane ( PC doB), também tem contribuído na formulação de políticas educacionais que impulsionam uma escola democrática que combata o racismo, machismo e homofobia no cotidiano escolar. Tendo sido candidata a deputada estadual pelo PC do B em 2018 ( alcançando mais de 10 mil votos), a doutora Dani Balbi sonha alto e promete alçar voos não só na vida acadêmica como também no parlamento atualmente composto por homens cis, brancos e ricos. Por toda sua inspiradora trajetória acadêmica e militante, conversamos um pouco com a mesma:
1)Como foi seu processo de transição e quais as redes que te ajudaram para que você tomasse esta decisão?
O processo de transição foi o mais saudável possível, tanto no que se refere á sua dimensão física, quanto no que diz respeito à saúde psicológica e, de modo geral, emocional. As profissionais do IEDE (Instituto Estadual de Endocrinologia e Diabetes do Rio de Janeiro) são sensíveis e preparadas. Além disso, minhas amigas se tornaram uma família que se somou à família biológica, dentre tantas minha mãe, minha madrinha e minha orientadora foram o suporte sem o qual não conseguiria.
2) Descreva um pouco da sua infância e defina de onde veio o estímulo para a dedicação à vida acadêmica.
Minha mãe, mulher negra e mãe solo, sempre foi extremamente firme, mas muito dócil, na mesma medida, o que ajudou-nos a mim e meu irmão. Ela é técnica de enfermagem no Hospital universitário da UFRJ, apaixonada pela instituição. Além disso, grande e constante leitora, incentivadora da nossa fome de cultura, de saber. A escola pública, certamente, com todas as suas contradições, foi crucial para que recebêssemos uma formação sólida de base, a qual me permitiu seguir os estudos sem grandes dificuldades.
3)Vivemos tempos de contenção das políticas sociais para os grupos minoritários, em especial às populações LGBTQI e negra. Que estratégias de resistência você tem em sua avaliação para lutarmos neste momento?
Acredito que precisamos encontrar a forma que nos une para seguirmos, então, para as pautas que nos unificam. Algumas formas de militância, além do esvaziamento dos movimentos sociais por participação na institucionalidade do governo, nos distanciaram e até nos antagonizaram da massa de trabalhadoras e trabalhadores. É preciso demonstrar que a política de ódio e os falsos antagonismos construídos como território de demarcação pelos governos de cariz fascista que temos são engodos para aprovar uma pauta de criminalização da pobreza e da negritude que interessa às corporações financeiras, faturando, assim, os ativos do Estado. Nesse sentido, talvez seja mais fácil demonstrar que não foram os acertos dos 13 anos de governo do PT os causadores da crise; demonstrar que o alargamento de direitos civis exige reparações históricas e que a cidadania é prerrogativa de todos. Voltar para as as ruas, praças, disputar narrativas e consciências.
4) Quais os planos futuros que você possui para a vida acadêmica ou política?
Acredito que a vida acadêmica, no meu caso, tem se tornado minha trincheira de luta privilegiada. Agora, atuando como professora da Escola de Comunicação Social da UFRJ, pretende me dedicar à construção da ponte entre pesquisa e extensão universitária. Acabo de me formar como roteirista pela AICTV e estou em fase de levantamento para a gravação do meu primeiro curta. Pretendo voltar a escrever teatro e, até o final do ano, publicar ou pelo menos “prelar” meu livro de poesias. Enfim, tudo que faço nessa área tem o intuito de ampliar, tem um vetor social e político acentuado. É nesse caminho que pretendo seguir.
5) Você como pesquisadora em literatura indicaria quais livros para se pensar a diversidade sexual ou racial no Brasil?
Acho que a Ângela Davis, de modo geral, demonstra com mestria a relação entre misoginia e a estrutura de classes. Eu tenho muito apreço pelas obras e artigos Heleieth Saffioti, quando articula a opressão (dominação em perspectiva), o capitalismo e as formas simbólicas em que ela estala. No Brasil, artigos sobre solidão, em todos os sentidos, das mulheres negras escritos pela Beatriz Nascimento, além das perspectivas distintas, mas muito potentes, de Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez. Eu não posso deixar de declarar minha enorme admiração pela Conceição Evaristo, principalmente “Olhos D’água” e “Ponciá Vicêncio”, além de “Eles não usam tênis naique”, de Márcia Zanellato e da Companhia Marginal da Maré.
6)Que tipo de incentivo você daria a pessoas trans que desejam seguir a carreira acadêmica e se inspiram em sua trajetória?
Continuemos, irmãs e irmãos. Sempre compreendendo que seguir para arranhar as estruturas deve significar expô-las, transformá-las, para que o caminho deixe de ser tortuosos para todas e todos que vêm atrás de nós, lembrando que a luta precisa ser consubstancial e relacional (classe, gênero, raça, sexualidade etc.). Nós encontramos força e nos encontramos, umas às outras, nos limites das nossas forças, tenhamos certeza.
Em suma, a trajetória acadêmica e política de Dani Balbi fura o bloqueio da invisibilização e marginalização da população trans nos espaços de poder da estrutura capitalista. Ao conhecermos um pouco da sua biografia, pensamentos e reflexões acerca da sociedade, parafraseio um pensamento da Angela Davis que diz: “ Não aceito as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar!”