Com sintomas que surgem ainda na infância, o racismo pode causar sérios transtornos mentais e Psicóloga alerta a importância da busca pelo auxílio psicológico e por profissionais que entendam a dor de seus pacientes.
A crescente onda de protestos ao redor do Black Lives Matters trouxe, novamente, a atenção do mundo para algo que é o sofrimento diário para jovens e adultos negros e o fator principal para o surgimento de doenças psicológicas como depressão, baixo autoestima e muitos outros.
De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde (MS) durante o Seminário Nacional de Saúde da População Negra na Atenção Primária, em 2019 e compartilhados pelo G1, apontam uma porcentagem alarmantes de suicídios entre jovens negros, um aumento de 12%, tendo como causa principal o Racismo. Mas por que o número é tão pouco divulgado? Por que esses mesmos jovens evitam procurar apoio psicológico?
A resposta nem é tão surpreendente. Tratado como tabu na comunidade negra, tais doenças tendem a ser ignoradas. A verdade é que não existe um motivo específico para não querer admitir a dor, mas, quando pequenos até a fase adulta, fomos acostumados a lidar e conviver com as constantes “pancadas” que a vida nos dá e dessa forma, esquecemos que elas podem se transformar em algo pior.
Marcas que ocorrem na infância e são carregadas até a vida adulta
Durante a minha pesquisa para realizar essa reportagem, iniciei um tratamento psicológico voltado para o racismo em especial. Convivendo com a dor diariamente, eu mesma havia me esquecido de como cada uma das palavras, olhares e atitudes me afetaram e me fizeram mudar. Em minha mente, deixei apenas viva a ideia de que era um daqueles dias e, aos poucos, pensava em encarar cada obstáculo ou situação de cada vez.
Sendo a única criança negra da sala, taxada de “preguiçosa” pelos professores e “molenga” quando alguma situação discriminatória acontecia. Acostumado a ser a amiga ou amigo “feio” no seu grupinho de amizades brancas. Negrinha, negresco, neguinha. Toddy, negão, “pau grande”, mula. Isso te lembrou alguma coisa? A mim também. Não só porque eu era esta criança, mas também pelas lembranças dolorosas que automaticamente associei a elas e a esses nomes e que guardei em um local onde não pudesse acessá-los com facilidade.
Minha mãe sempre foi uma mulher forte. Criou e sustentou as duas filhas sozinha. Ela me disse uma vez que não se importava e que tinha orgulho disso, mas uma ou duas vezes a pegava escondendo o choro em seu quarto quando as dívidas apertavam. Perguntei o motivo dela ter se escondido e ela respondeu com simplicidade: “não quero que vocês me vejam chorando”.
“Nunca deixe que eles te vejam chorando”, essa era filosofia da minha família. Depois de mais velha, descobri que era a de muitas outras famílias negras por aí e que estava presente na lei do nosso povo. Que não nos vejam chorar. Somos fortes. Mas nem tanto. Talvez não precisávamos ser o tempo todo e tudo bem também.
“Mas se abaixarmos a cabeça, o que vão fazer com a gente?”, Anne Karolynne, jovem negra de 27 anos e estudante de Relações Internacionais, respondeu assim que perguntei o motivo de muitos negros não procurarem auxilio psicológico para lidar com as dores causadas pelo racismo. A resposta, quase automática, era mais real do que gostaria de admitir, a psicóloga goiana Weslaine Ribeiro, nos ajuda a entender:
“A negação de identidade e a crença na inexistência do racismo, a opressão da sociedade pelo lugar de vitimismo pode gerar essa sensação de fraqueza ao qual não queremos ser associados”, explicou. “A falta de referência de profissionais negros também gera essa recusa. Pelo receio de serem invalidados e sofrerem novamente um episódio de violência num ambiente que deveria ser de acolhimento e empatia, já que um profissional, não-negro, e sem consciência racial pode invalidar as dores do racismo e gerar danos emocionais e psicológicos ainda maiores”.
Matheus Damasceno, jornalista goiano de 22 anos, diagnosticado com ansiedade e depressão, aponta o racismo estrutural e relembra que os maiores episódios ocorreram entre a infância e a adolescência. “Eu senti muito no meu dia-a-dia. Estudei em escola particular, principalmente no ensino fundamental e ensino médio, pois eu era o único aluno negro. Duvidaram do meu intelecto por ser uma pessoa preta e, para evitar o aumento do bullying que eu sofria, onde meus colegas criticavam a cor da minha pele, julgavam o tamanho do meu nariz e da minha boca, sempre rasparam meu cabelo. Isso me deixou marcas profundas, isso acabou com a minha autoestima”, compartilhou.
O dado compartilhado pelo Ministério da Saúde, em 2019, apontou que jovens negros com as idades entre 10 e 29 anos são o perfil principal dos suicidas no país, representando um risco de 45% maior. Matheus conta que, justamente durante essa faixa etária, as marcas já causadas pela infância, foram potencializadas na adolescência.
“Foi um dos meus momentos mais críticos. Pois desenvolvi depressão porque eu não me sentia digno de me relacionar com uma pessoa, me questionava intelectualmente. São feridas e elas ficam ali, no seu subconsciente e qualquer coisa provoca um gatilho”, falou. “Acredito que se a minha família, ainda na escola, tivesse procurado um psicólogo para me ajudar a lidar com isso, tudo seria diferente”.
Mulheres negras são uma maioria ignorada
“O racismo afeta desde a falta de autoaceitação com a estética até em decisões importantes. Como se certos lugares não fossem para mim”, conta a estudante de Odontologia, Mariana Campos Batista. “Confesso que já precisei muito de um apoio psicológico, mas nunca procurei. Por achar que seria uma questão a resolver comigo mesma.”
Assim como Mariana, muito jovens e adultos negros insistem em colocar tais situações de lado, por acreditarem em é algo que precisam lidar. Contudo, Weslaine afirma que não precisamos esconder essas feridas, e sim, enfrentá-las.
Com a atuação voltada para relações raciais e saúde mental da população negra, relações abusivas e violência contra a mulher, Weslaine afirma que jovens e mulheres negras são maioria entre os casos. “Acredito que o apoio psicológico é necessário para fortalecer nossa identidade enquanto pessoas pretas, valorizar as nossas raízes e nos empoderar enquanto seres humanos dignos de respeito e direitos que nos foram negados por tanto tempo. Essa é uma das maneiras mais poderosas de enfrentar o racismo”, fala.
A melhoria feita através do apoio psicológico de profissionais negros
“Quando a população negra fala que vai ou quer ir em um psicólogo, logo é tratado como vitimismo ou falam que o negro ‘aguenta tudo’. E isso não é verdade!”, Matheus conta. “Hoje penso que talvez se eu não tivesse procurado auxílio naquele momento, realmente não sei o que teria acontecido. Me sinto muito melhor! Depois de um tempo de tratamento, consigo refletir sobre cada situação, entendo o contexto de cada uma delas. Consigo me ver em um lugar, me sinto representado ao ver outros pretos em locais de destaque e sinto que é possível chegar lá”.
Sendo parte de uma nova porcentagem de psicólogos com foco na dor da população preta, Weslaine Ribeiro comenta que a procura por um profissional que entenda a dor passada, e não deslegitima o paciente, é o que a motiva a continuar atuando. “A procura por uma profissional preta e antirracista que entenda e valide a dor do racismo tem sido a maior justificativa pela procura e tem aumentado gradualmente, de acordo com que as pessoas têm conhecimento e referência do meu trabalho. Me sinto honrada por esse reconhecimento, pois indicamos profissionais ao qual confiamos em seu trabalho porque é o que precisamos. Nós por nós”, compartilha.
Se você, pessoa preta, precisa de auxílio psicológico, por favor, entre em contato com a nossa Equipe. Vamos indicar um profissional negro. Nós por nós.
Gabriella Andresa é Jornalista, colaboradora do Notícia Preta, WebRedatora e autora do livro-reportagem “Paradoxo da Dança”.