Por Thiffany Odara – Pedagoga, Especialista em Gênero, Raça/etnia e sexualidade. @thiffanyodara
Rememorando o artigo da pesquisadora e diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck, “Nossos Passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo”, comecei a pensar, a refletir dentro de uma análise ancestral e convicta que olhar para trás é necessário e essencial, para que possamos almejar o futuro imprescindível, diante das diversas conquistas/lutas travadas pelas (os) nossas (os) ancestrais.
Dito isto, irei me reportar ao dia do orgulho LGBT, que tem como data o 28 de junho, e apresentando como a máscara do silenciamento legitimada pelo racismo e seu apagamento histórico e simbólico, recai em referências que são linhas de frente de processos decisivos para o combate ao racismo e da transfobia, mundialmente. Sendo assim, esse olhar para trás deve ser um exercício constante em nossas vidas, apanhar o que ficou esquecido é confrontar a exclusão e insubordinação, legitimadas pelas facetas do racismo estrutural e colonial, que cotidianamente tenta nos invisibilizar.
Existindo enquanto preta, travesti e periférica reconheço algumas conquistas que recaem sob minha existência transgressora, em um mundo cujo modelo de vida/social é cisheteropatriarcal, e sem esquecer do racismo estrutural que determina nossas relações cotidianas, no país que, covardemente, mais mata pessoas trans no mundo, onde segundo o levantamento de 2019 da Associação Nacional de Travestis e Pessoas Trans – ANTRA 82% dessas mortes são de pessoas negras e pardas, onde essas mortes físicas não são bastante para o processo de negação de vidas que incide no esquecimento de um genocídio silencioso em curso, que mesmo após a morte física, o massacre é contido através da exposição de nomes que negam até mesmo o direito a existir na morte.
Refletir sobre tudo isso me faz ter consciência do quanto temos que lutar para avançar e muito, sem perder de vista, jamais, o pouco que conquistamos hoje, sendo muito, mas muito graças a um conjunto de travestis e mulheres trans negras que ao longo do tempo lutou e derramou sangue, mas que pelo excesso da ironia do plano colonial branco, foram tiradas do centro de debate racial e de gênero, pela complexidade estrutural do racismo engendrado pela transfobia.
Dessa forma, compreendo que minha existência neste mundo físico é revigorada por existências que antecedem a minha, logo este pensamento me remete a compreender a ancestralidade como possibilidade de trazer, reacender existências e ratificar que, literalmente, nossos passos vêm de longe.
Destacarei aqui a existência de duas grandes referências negras, dentre muitas, do movimento hoje dito e compreendido como multi-identitário: o movimento LGBT, onde as suas histórias de vida divergem em tempo cronológico, território entre outras, mas se encontram quando o assunto é formatar, minimizar e apagar as resistências de travestis e pessoas trans negras dos grandes debates.
A Xica Monicongo, citada como cudina que veio para a Bahia por volta 1591, segundo os registos históricos, africana do Congo. Aqui no Brasil, Xica foi escravizada e desafiou o modelo colonial daquele período ao reivindicar o gênero feminino para si, desafiando o Cis’tema escravagista, cisheteropatrical, no início do período colonial. O que a levou a ser denunciada para a inquisição daquele período, a insurgência vista na história de Xica Monicongo como fragmento de que nossos passos são resilientes, insurgentes, e que tem nome, sobrenome e cor, torna-se uma mensagem de uma narrativa de vida, que precisa estar viva em nossa memória, para a consciência de quem somos hoje .Outrossim é a história da ativista norte americana, Marsha P. Johnson, travesti, negra que contribuiu de forma contundente, para uma das maiores revoluções LGBT no mundo, a Rebelião de Stonewall, ocorrida no Estados Unidos em 1969, a sua presença marcante nesse processo foi capaz de abrir portas, para se pensar onde o orgulho LGBT começou? E no qual orgulho podemos pautar e pontuar? Se a própria Marsha P. Johnson, que contribui para os passos iniciais do movimento LGBT foi altamente hostilizada, vaiada e invisibilizada desse processo.
As marcas desses apagamentos nos revelam o quanto ainda reproduzimos, dentro de nossas caixinhas, a invisibilidade sistêmica fundada por um processo de embranquecimento de nossas histórias em diferentes frentes de lutas.
Lembrar dessas duas grandes referências é dá um ponta pé inicial para compreender onde o orgulho começa e visibilizar a diversidade e resistências negras não lembradas pelo movimento negro e esquecidas pelo movimento LGBT, forjada pela resistência incansável contra o modelo hegemônico, marcado pelo viés racial, entrecruzada pelo gênero, ratifico que enaltecer o processo de luta dessas candaces é aspirar as nossas histórias, por um orgulho onde possamos nos enxergar, sem pecar pelo excesso, mas protagonizando a maré insurgente negra de travestis e mulheres trans no processo histórico de pautas negras e LGBT no mundo.
¹A palavra cudina corresponde a travesti/ transexual.