Helena Gonçalves é enfermeira e atua em uma plataforma de petróleo, além de ser mestranda em saúde coletiva. Uma mulher negra trans, que assume a missão de cuidar da saúde de centenas de pessoas em alto-mar, e se reafirma constantemente no espaço que ocupa, a partir do seu trabalho.
Neste Julho das Pretas, em que é comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, Helena falou exclusivamente com o Notícia Preta sobre como é trabalhar embarcada, lidar com o preconceito dentro e fora do trabalho, e sobre o que significa ser uma mulher negra, para ela.
“Eu não invento o mundo, eu sou a continuidade daquelas que antes de mim o fizeram”. Para Helena, isso é o que significa ser uma mulher negra.
Apesar de todas as dificuldades impostas pela sociedade, Helena diz que ser uma mulher negra tem haver com carregar uma grande e importante herança, e explica o motivo.
“Apesar de um tom mais claro, carrego comigo a herança da mulher preta que me pariu, que me fez retornar ao mundo, para uma nova história. É de um grau de sensibilidade outro que parte da vida pode passar mascarado ou pouco compreendido porque a depender da criação a discussão racial, ela é pouco trazida para a educação, mas muito vivenciada porque a sociedade marca e impõe experiências sobre a vivência mesmo que desconheçamos o mecanismo pelas quais elas vão se dar“.
Seguindo com a reflexão, essa herança, para Helena, é um presente tão forte que independente das constantes tentativas de acabar com ela. “É ter na vida o presente da herança, que apesar das investidas em deturpá-la como feito pelo racismo, é carregada da história das muitas que vieram antes de mim“.
Ser uma mulher negra trans, para Helena, é um desafio necessário, diante o racismo, o machismo e a transfobia da sociedade.
“É um exercício contínuo de lutar. Isso não é algo lindo, nem belo pra se ver com glórias. É doloroso, cansativo, tem muitos dias desanimadores, mas é a forma que ainda nos é proporcionada para viver na sociedade. Ou melhor, sobreviver socialmente“, diz a profissional da saúde, que conta como é trabalhar em uma plataforma de detalhes.
“Eu digo que não existe espaço pra incertezas. Quando eu vou embarcar, é necessário mais do que nunca que esteja equilibrada com meu lado profissional, lembrar de manter a postura, de manter a calma e a atenção. Estar a bordo como enfermeira e única profissional de saúde, em uma embarcação onde são aproximadamente 200 pessoas, podendo ser até mais, onde estão sob minha responsabilidade para zelar pela saúde integral delas durante o período do embarque“, explica Helena.
A enfermeira destaca que por ser a profissional responsável na embarcação, todo o processo de saúde dos colaboradores, desde higiene e nutrição, até outros fatores biológicos, ficam sob os seus cuidados. Mas a enfermeira também afirma, que além de lidar com questões relacionadas a saúde, precisa também lidar com o preconceito, mesmo que enquanto trabalha.
“Sei que existem olhares, que existe o machismo presente até pela predominância de homens no espaço. Então frequentemente preciso me equilibrar em meu lado profissional, entendendo toda a minha humanidade, pra me articular para desenvolver o meu trabalho, lidando com as diferentes reações que vão se dar a minha existência. Eu preciso pensar sempre que vai existir um desconforto e busca de confronto por ideais pessoais em razão a se deparar com a minha existência, e me organizar para ser firme e me posicionar diante disso para ser respeitada enquanto a profissional que sou, e com as responsabilidade da função que possuo a bordo“.
Mestranda de saúde coletiva, além de ter escrito capítulos de livros direcionados a área da saúde, como no livro “Enfermagem: Inovação, Tecnologia e Educação em Saúde”, Helena Gonçalves fala sobre a importância de estar nesse lugar de debate e estudo sobre saúde.
“É um exercício importante me colocar nesse campo do estudo, porque apesar da dimensão que é alcançada pela saúde coletiva no seu campo de estudo, por fatores humanos, existem ainda muitas questões que são negligenciadas, pouco discutidas ou mesmo pensadas“, pontua a enfermeira, que continua explicando por qual motivo ter uma mulher negra proporcionando um novo olhar.
“Compreendo que existem aqueles que se propõem a fazer o exercício da pesquisa, de levantar as pautas e discussões observando a diversidade presente na sociedade, mas é notório que discussões como saúde da população negra tenham ainda que ser uma caixinha separada que alguém tem que ficar fazendo força pra ir lá abrir e trazer para temáticas que são discutidas pensadas na sociedade“. Diante este cenário, Helena afirma por qual motivo decidiu estudar e trabalhar nessa área.
“Eu estudo saúde coletiva, e me aprofundo em trabalhar a temática de populações em vulnerabilidade justamente porque sei, compreendo e vivo o tanto que temáticas básicas que poderiam trazer uma qualidade de vida muito melhor para essas existências são extremamente negligenciadas“.
Sobre as mulheres negras que te inspiram, a enfermeira afirma que “não existirá hoje uma Helena Gonçalves em vida se não houvessem mulheres pretas ao meu lado“, e por isso, detalha quem são essas mulheres.
“Existe a Daniele Catanhede, enquanto uma irmã por quem tenho respeito, admiração e um carinho que abraça nossa história. Tenho a Eloá Rodrigues, que foi quem desde o início da transição esteve ali do meu lado. Foi meu abrigo para conversar, onde compartilhávamos sobre nossas vivências em um lugar de troca e acolhimento em nossas semelhanças, e que em sua grandeza mostrou ao mundo que sua existência poderia ser vista com a grandeza que tem quando representou o Brasil no concurso Miss International Queen“.
Além dessas, que estão por perto, Helena também ressalta outras inspirações que de longe, também contribuem para seu fortalecimento. “Como a atual Deputada Federal Érika Hilton, que segue construindo um mandato exímio mesmo diante de tantos ataques a sua integridade e a sua existência“.
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