Furtos, estelionatos e roubos seguem liderando as estatísticas criminais no Rio de Janeiro, que registrou mais de 1 milhão de ocorrências em 2024. Mas um dado chama atenção: 124 tipos de crimes e contravenções tiveram apenas um registro em todo o ano, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Na lista estão delitos que parecem ter saído de outro século, como curandeirismo, vadiagem, impedir a procriação da fauna, introdução ilegal de animais no país e até morte por fulguração, causada por raio.
Entre esses crimes quase esquecidos nas estatísticas, dois carregam um histórico diretamente ligado à criminalização da pobreza, dos saberes populares e da população negra: curandeirismo e vadiagem. O único registro de curandeirismo no estado em 2024 aconteceu em Nova Iguaçu. Uma moradora denunciou, em abril, um homem que prometeu curá-la de transtorno bipolar com um trabalho espiritual. Sem apresentar melhora, ela procurou a 56ª DP (Comendador Soares) e alegou que ele não tinha formação para exercer a atividade.

O crime de curandeirismo faz parte do Código Penal desde 1940, mas sua origem remonta ao Código Penal de 1890, formulado no pós-abolição, que criminalizou uma série de práticas culturais, religiosas e de sobrevivência da população negra recém-liberta. Desde sua criação, esse dispositivo foi usado como ferramenta para perseguir saberes ancestrais e práticas de cura vinculadas às religiões de matriz africana, à espiritualidade popular e a práticas não reconhecidas pela medicina hegemônica.
Apesar de parecer obsoleto, o artigo 284 do Código Penal, que define curandeirismo, continua em vigor. Ele prevê pena para quem exerce atividades de diagnóstico ou tratamento sem estar habilitado pela medicina formal, mesmo quando se trata de práticas espirituais ou tradicionais, muitas delas de origem afro-indígena.
Outro delito que aparece sozinho nas estatísticas de 2024 é a vadiagem. O registro foi feito na Delegacia da Mulher de Campos dos Goytacazes, mas a própria unidade reconheceu posteriormente que houve erro na tipificação. A contravenção penal de vadiagem, que segue prevista na Lei de Contravenções Penais desde 1941, tem raízes ainda mais antigas, remontando ao período do Império e consolidada no Código Penal de 1890. Por décadas, foi usada para prender pessoas negras, pobres e trabalhadores informais sob a justificativa de que não tinham ocupação lícita ou residência fixa.
A repressão à vadiagem foi intensa especialmente no início do século XX, período das reformas urbanas e sanitárias do Rio, quando a gestão do então prefeito Pereira Passos promoveu uma série de intervenções que expulsaram populações pobres dos centros urbanos. Registros da época mostram que prisões em massa ocorriam em locais como a estação Pedro II, atual Central do Brasil, onde pessoas em situação de rua eram retiradas e detidas sob acusação de vadiagem. Dados históricos mostram que, em 1975, essa era a segunda maior causa de prisão no estado, com quase duas mil pessoas presas apenas no primeiro semestre.
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O uso desses dispositivos legais como ferramentas de controle social revela a permanência de estruturas racistas e classistas no sistema penal brasileiro. Embora hoje apareçam de forma quase fantasmagórica nas estatísticas, com apenas um registro cada em 2024, o simples fato de esses crimes ainda constarem na legislação indica que os resquícios do passado escravocrata seguem presentes no direito penal do país.