Em continuidade à série de matérias sobre o descobrimento ou invasão do Brasil, o Notícia Preta traz para o debate a figura de Tiradentes e historiadores debatem se ele, assim como o descobrimento, é um mito excludente da real sociedade brasileira.
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Jonathan Raymundo, professor de história e filosofia, formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), conta que Tiradentes é alçado a herói nacional pelos republicanos que procuravam exaltar personalidades que se contrapunham ao período imperial. “Interessante pensar que as ideias iluministas, que inspiraram a Inconfidência Mineira, da qual Tiradentes foi o único condenado e morto por enforcamento, guardam contradições interessantes que precisamos destacar”, afirma o professor.
“O pensamento iluminista, que se autonomeia iluminado, conviveu tranquilamente com a colonização, escravidão, mas ao mesmo tempo que se dizia se guiar pelos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade. Parte dos inconfidentes, que queriam republica e não queriam pagar mais impostos para a coroa portuguesa, defendiam a manutenção da escravidão. As Luzes e a República não compreendem os ‘terrivelmente outros’. Essa é a grande tragédia brasileira”, acrescenta Jonathan.
Lívia Theodoro, historiadora graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que atribuir a Tiradentes o título de “novo marco fundatório” representa um risco para uma narrativa decolonial que visa dar vasão a voz da história dos vencidos, como os povos indígenas e afrodescendentes no Brasil.
De acordo com ela, é simplista atribuir a Tiradentes o papel de novo marco fundador da República Brasileira. Apesar de sua importância histórica, é necessário analisar sua figura num contexto mais amplo. “Ao longo dos anos, ele foi associado à imagem de Jesus Cristo, como uma estratégia para gerar empatia com o público, através da influência da cultura cristã. Embora a Inconfidência Mineira possa ser definida como uma resistência ao domínio português, devemos considerar as nuances históricas”, pontua.
“Tiradentes provinha de uma família que não estava em situação de pobreza, o inventário de sua mãe realizado em 1756 revelava a posse de 35 escravos na extensa propriedade rural do Pombal, onde também havia atividades de mineração. Além disso, o inventário de seu próprio patrimônio revela que Tiradentes possuía vestuário e mobiliário semelhantes aos utilizados pela aristocracia do século XVIII“, completa Lívia.
Ela finaliza ressaltando que o movimento libertário mineiro também reforçava o ideal de beneficiamento de apenas uma classe social, a que os bandeirantes pertenciam.
“Para nós, historiadores, isso indica que a Inconfidência Mineira e consequentemente seu mártir, apesar da natureza anticolonial de sua luta, também visava estabelecer um Estado independente que beneficiasse os grupos sociais aos quais eles fariam parte, sem necessariamente atender às demandas de outros grupos subalternizados”, conclui a historiadora.
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Romulo Barros, explica que o Brasil precisava criar um novo panteão, forjar novos heróis, de preferência aqueles que tivessem se mostrado contrários à colonização portuguesa.
Naquele momento, segundo ele, Tiradentes não foi o único a ser colocado como candidato. O frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, o frei Caneca, líder do movimento republicano nordestino conhecido como Confederação do Equador, também foi cogitado para o posto de “pai da pátria”, no entanto, não venceu a disputa por sua origem não ser o centro irradiador do poder republicano, o sudeste.
“Isto posto, é possível repetir: não há nada de novo em Tiradentes. Ele não é um marco fundador, mas uma continuidade, uma adaptação necessária às elites que já conduziam o país desde muito antes, mas que agora precisavam se adequar aos novos tempos e às novas demandas políticas, à “modernidade”, que exigia das nações novas organizações políticas para a manutenção de velhos privilégios”, disse o doutor.
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