Por Marcelo Moreira – sócio diretor da DiversaCom, Agência de Comunicação focada em diversidade
Um dos mais importantes museus de história preta do mundo, o Museu de História e Cultura Afro Americana, em Washington, nos EUA, anunciou esta semana que vaiexibir a versão original do discurso “I have a dream” (“Eu tenho um sonho”). Vai ser pra marcar o aniversário de 60 anos do dia em que um emocionado Luther King disse que sonhava com um dia em que viveríamos num mundo com paz e igualdade. O discurso é considerado até hoje um dois maiores da humanidade e foi um hino para o movimento do direitos civis.
O discurso foi feito para um público de 250 mil pessoas, no Memorial Lincoln Center, um dos lugares mais icônicos da capital americana. Ele fez parte da Marcha por Emprego e Liberdade, que rodou os Estados Unidos em caravana naquele distante ano de 1963. MLK resumiu os sonhos e aspirações do povo preto americano e expressava o desejo de que um dia as pessoas viveriam em paz e harmonia.
O que pouquíssima gente sabe é que no texto original, na época escrito batido a máquina de escrever (lembram dela), não tinha o trecho que mais emocionava, a parte em que repetidas vezes MLK dizia “Eu tenho um sonho”. E não tinha simplesmente porque o discursoescrito no papel nunca teve essas palavras.
Uma reportagem publicada essa semana no jornal Washington Post explica o motivo e cita um trecho da autobiografia de Luther King onde ele mesmo esclarece o mistério. “Eu comecei lendo o discurso, mas foi até uma parte. A resposta do público foi tão maravilhosa que do nada me veio a inspiração de todo o resto do que eu disse”.
Outra curiosidade é que a primeira vez que Luther King fez o discurso “Eu tenho um sonho” não foi em Washington e sim na cidade de Detroit, no Estado deMichigan. Dois meses antes do discurso na capital o “Eu tenho um sonho” foi feito para uma plateia majoritariamente negra, refletindo a população de Detroit dos anos 60. Os negros de Detroit na maioria fugiram do Sul escravagista e encontraram emprego na cidade que então era a capital da indústria do automóvel do país.
As palavras de Luther King ecoam até hoje, 60 anos depois. Mas a verdade que todo o povo preto sabe é que até hoje estamos esperando o sonho do reverendo virar realidade. Não se pode negar que o movimento dos Direitos Civis americano teve suas conquistas. Se hoje preto vota, anda na frente num ônibus, senta na mesa que quiser nos restaurantes, estuda em escolas onde antes só tinham brancos, temos que agradecer aqueles sonhadores que lutaram e deram suas próprias vidas para que os negros tivessem mais respeito e que houvesse mais equidade no mundo. As palavras de Luther King ecoaram no peito e saíram da garganta de muitos Panteras Negras, de Malcolm X, Rosa Parks e do congressista John Lewis, que depois de 50 anos servindo no congresso nos deixou recentemente.
O movimento que começou do lado de cima da linha do Equador também teve seus reflexos aqui no Brasil. Tivemos nossas conquistas hoje consagradas na Constituição. Mas quando a gente olha pro lado ainda lembra que os mais de 300 anos de escravidão ainda deixa sequelas na sociedade, seja lá, ou seja cá.
A gigantesca reação pela assassinato de George Floyd por um policial branco ajudou a reacender a chama da esperança de que a sociedade precisa acordar e investir em um mundo mais diverso, mais múltiplo, de equidade social e racial. Empresas estão se engajando em um movimento com três letrinhas ASG (Ambiental Social e Governança). Quem não tiver uma agenda com este foco fica pra trás na reputação e isso afeta os negócios.
Mas o que dizer quando jovens negros seguem sendo mortos nas ações policiais. O que dizer para os amigos e parentes do adolescente Thiago Menezes, que foi executado por policiais na Cidade de Deus. Thiago, que com tantos na sua idade, sonhava em um dia ser jogador de futebol, já estava caído no chão quando foi morto. Os policiais militares, segundo seus parentes, ainda forjaram a cena do crime para parecer que ele tinha atirados nos policiais. A PM nega a versão da família.
Em visita ao Rio nesta quinta-feira, o presidente Lula criticou a ação da polícia. ” Precisa saber diferenciar o que é bandido do pobre andando na rua”. O presidente está certo. Nossa polícia foi criada num tempo não muito distante onde o preto era escravo e não era tratado como gente. E os hábitos não mudaram muito de lá pra cá.
Fato é que quem estiver a passeio pela cidade de Washington e visitar os Museu de História Africana vai ver um pedaço de papel já amarelado, com as dobras do tempo. Lá estão palavras que quando foram ditas pareciam que iam mudar o mundo. As palavras de MLK estão lá para serem lembradas, mas também para serem uma inspiração de um mundo melhor. Na Cidade de Deus e em muitas outras favelas no Rio, MLK é como os jovens se chamam na internet. É o apelido para moleque. E assim como o MLK do discurso famoso, o MLK Thiago também tinha um sonho. Só que não o deixaram viver pra que ele acontecesse. Nós podemos, por todos os MLKs do mundo.
Íntegra do discurso de Martin Luther King em 28 de agosto de 1963.
(com a parte improvisada do “Eu tenho um sonho”)
“Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.
Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.
Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.
Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.
De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com “fundos insuficientes”. Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.
Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranquilizante do gradualismo.
Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.
Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.
Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do
legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre. Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só.
E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, “Quando vocês estarão satisfeitos?”
Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.
Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixou marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do Norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero.
Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
“Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!”
E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro. E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.
Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.
Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alegrenses da Pensilvânia.
Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.
Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia. Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.
Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.
Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.
E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro: “Livre afinal, livre afinal.
Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal.” EU TENHO UM SONHO
Leia também: Suprema Corte dos Estados Unidos torna inconstitucional ações afirmativas de raça nas universidades