Quase três semanas após a passagem do ciclone Idai no sudeste da África, o trabalho na região segue intenso e o socorro internacional não para de chegar. Principalmente após o surgimento dos casos de cólera. Em Moçambique, já chegam a 1.046, sendo 949 pacientes tratados e 102 internados. Até agora, houve uma morte pela doença. O número vítimas fatais pelo ciclone subiu para 598, segundo as autoridades moçambicanas. Zimbabwe e Malawi também foram afetados, totalizando quase 800 mortes nos três países até o momento.
Organizações internacionais e governos estão ajudando Moçambique, enviando homens, alimentos, remédios, água. Para Fernanda Thomaz, professora de História da África da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o apoio de organismos internacionais sempre foi comum no país, que sofre com problemas de infraestrutura:”Moçambique tem péssima infraestrutura, de forma geral: estradas, aeroportos, comunicação, saneamento, mesmo na Beira, que é a segunda maior cidade do país. Após sua independência, em 1975, o país acabou herdando, como muitos países africanos, um formato de administração da própria gestão do Estado do período colonial, e virou mais patrimonialista, voltado para funcionalismo, para enriquecimento pessoal. O Estado não tinha preocupação de investir em infraestrutura nem em política pública social, e quem acaba fazendo esse papel muitas vezes são as ONGs, as instituições internacionais, financiando, inclusive, o Estado. Então, a economia moçambicana é dependente externamente.”
As ONGs Médicos Sem Fronteiras, Médicos do Mundo, a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), além de países como China, Brasil, Portugal são alguns dos organismos internacionais na região, que, além da cólera, tem registros de surtos de diarreia, e malária. Segundo a Agência ONU News, as condições atuais, com águas paradas, falta de higiene, corpos em decomposição e sobrelotação dos abrigos temporários, podem facilmente levar a essas doenças. As crianças são especialmente vulneráveis.
A historiadora Fernanda Thomaz destaca que, apesar do número de atingidos — mais de 1,5 mil feridas e cerca de 169 mil famílias afetadas pela tempestade — o ciclone não foi surpresa: “O Instituto Nacional de Meteorologia de Moçambique já estava denunciando o risco desse ciclone. Foi divulgado em rádio, televisão, o governo sabia, mas não fez nada. A população também não acreditou, porque as pessoas estão descrentes com esse suporte do Estado, em termos de proteção social, de política pública. Acharam que era mais uma estrategia do estado para conseguir apoio internacional”.
Desde fevereiro no Brasil para cursar mestrado em História na UFJF, Aly Juma Sahal, de 28 anos, nasceu, cresceu e tem familiares na cidade de Beira, a mais atingida pelo ciclone. Ele só conseguiu contato com a mãe quatro dias após o desastre. “Quando deu-se o ciclone, a gente que está em outra província não conseguia manter contato com eles por celular. Nenhuma operadora funcionava. Durante alguns dias, fomos acompanhando pelas mídias o que havia acontecido. Para além das perdas materiais, não havia luz, água, os alimentos iam rareando, a estrada principal que dá acesso à cidade da Beira estava cortada (o que significava que a circulação foi interrompida e que, igualmente, ninguém podia sair e nem entrar na Beira por via terrestre) e estimava-se em cerca de 50 o número de mortos e uma centena de feridos”, relatou o estudante, que se prepara para voltar à cidade.
Aly contou que seus familiares e amigos sobreviveram à tragédia. Apenas um primo seu, de 6 anos, teve um corte na perna. A mãe de Aly disse ao estudante sobre os problemas nos serviços públicos:”Os hospitais não estão funcionando, eles estavam sem energia e estava difícil se alimentar normalmente”.
Segundo a Agência ONU News, mais de 45 centros de saúde e cerca de 37 mil casas foram destruídas, e outras 20 mil foram parcialmente danificadas. Mais de 3 mil salas de aula foram destruídas e 90 mil estudantes tiveram as aulas interrompidas. A ONU News informou ainda que as Nações Unidas lançaram um apelo humanitário de três meses de US$ 281,7 milhões, incluindo US$ 4,3 milhões para recuperação inicial. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) incluiu um pedido de US$ 1 milhão para apoiar as operações de remoção de detritos e a rápida restauração dos meios de subsistência para que o país possa acelerar as atividades de recuperação.
No país, além das organizações e governos, a própria sociedade civil está se mobilizando em busca de recursos para os sobreviventes. Fernanda Thomaz ressaltou que essa mobilização tem sido significativa para o país:
“Talvez não tenha acontecido na história de Moçambique. É uma mobilização da sociedade civil, mas que está indo para além do Estado. Além da perda humana, uma das consequências desse desastre é o aumento de dependência e tentativa de reconstruir parte do país”.