Por Cristina Tadielo
Desde a assinatura da “Declaração de fim da abolição”, sim, declaração pois a suposta liberdade e conquista de direitos compuseram tão somente uma distopia, os desafios e dificuldades da população negra só se revestiram de novas vestimentas.
A sociedade brasileira, assim, estruturou-se em sistemas de opressão e institucionalizou práticas descriminalizantes. Integração, visibilidade, direitos, lutas são facetas que se tornaram o mote de sobrevivência. Antecedendo a assinatura, a história conta e reconta cansativamente a saga cruenta que desumanizou uma comunidade. Precedendo a assinatura, a história reflete, diariamente, o feito. Aí encontra-se a gênese da maior de todas as epidemias, o racismo.
Esta doença arbitrou condições de sobrevida com a imposição de forças além das humanas até mesmo por ser a negação da humanidade do povo preto, um dos pontos cruciais do racismo. O processo escravagista maculou de forma cabal os corpos pretos e o desconhecimento da marcha discriminatória e racial, dissemina a crença de que racismo não existe.
No curso desta narrativa histórica, movimentos que buscam a equidade, emergiram e trouxeram questões de reflexões enfáticas acerca das molas desencadeadoras de atitudes por vezes questionáveis. A exemplo, surgiram os movimentos negros, feministas e afins correspondendo, no passado e presente a uma série de ações realizadas por diversas pessoas na luta contra o racismo e por direitos.
Neste ínterim, atitudes e pensamentos são conceituados fragmentando práticas. Tomando o feminismo como linha de frente de lutas das mulheres por igualdade de direitos e aqui ressalta-se a luta, não por de ocupação de poderes, mas de equilíbrio de forças, é preciso questionar sobre qual contexto o feminismo se refere; sobre qual mulher levanta-se esta bandeira.
Desde aquela assinatura, em 132 anos de suposta “liberdade”, pouco ou quase nada se avançou na promoção de políticas públicas para uma ampla conscientização antirracista, fundamental para acabar com o racismo, conforme afirma Ângela Davis, professora americana, filosofa, feminista, ativista sobretudo das causas raciais. Na verdade, o avanço foi de persistentes lutas, pois os interesses eram e ainda são bem contrários a qualquer face de um equilíbrio.
A pirâmide da sociedade brasileira se constitui de homens brancos no topo, seguido por mulheres brancas, homens negros e na base, mulheres negras. Neste sentido, não é difícil perceber os enfáticos impactos sociais das poucas políticas públicas, interseccionando no seu interior as estruturas racistas, patriarcais, sexistas e heteronormativas, levando em consideração a fundamental questão de gênero nesta matemática, em que as mulheres negras são potencialmente atingidas.
Para esta mulher, viver em uma sociedade de bases segregatórias, é um grande desafio. A mulher negra é representante dos dois segmentos que mais sofre com a segregação, mulher e negra. Sobreviver sob assombrosas perseguições a coloca em constante e extrema fragilidade, fomentadoras de situações de solidão, de desamparo e invisibilidade permanente.
O desafio de ser mulher negra na conquista de seu espaço requer vontade de toda uma sociedade em colocar o dedo na ferida, fazer o indesejado emergir sobre o descabido acerca do que padece na intimidade de suas vidas, no corpo e na matéria, no interior de suas habitações periféricas e que raramente ganham espaços na mídia.
E neste cenário de desumanidade, a mulher negra é atingida pelas mazelas de um setor que para além de assassinar, as extingue simbolicamente. Para a mulher negra, direitos foram brutalmente furtados. Mesmo diante de avanços, todas as vertentes de desenvolvimento social a subestimam, subjugam, e a desestabilizam.
O direito a trabalhar por exemplo, nunca foi uma conquista, mas sim uma forma de sobrevida. Etiquetada como inferior, sexualizada e objetificada, as oportunidades quase nunca (ou nunca) chegam de forma espontânea. É preciso cavá-las. Por essa herança social complicada e desumanizadora, os trabalhos são precarizados e há imensa dificuldade de acessar direitos como saúde e educação.
Desafiante também é ter que ser forte todo o tempo e o tempo todo, principalmente quando a tendência é a desmoralização e o descarte buscando convencer que o lugar de fala não é o do respeito moral, histórico, social e estético.
A militância, por vezes, é tida como cansativa e muitas vezes taxada de vitimização. Certo que por desconhecimento, por falta de empatia e pior, por posicionamento. Um homem hétero nunca saberá o que um homossexual sofre, um homem homossexual nunca saberá o que uma mulher branca sofre, uma mulher branca nunca chorará como uma mulher preta chora.
O choro que se silencia na desumanização vem da mulher negra quando, comprovado por dados estatísticos, é a maioria das vítimas de violência doméstica, da mortalidade materna, da violência obstétrica. O choro que fazem questão de não escutar está também na dolorosa busca por justiça pelo extermínio de seus filhos e companheiros ou retirada de todos os seus direitos, das mulheres do campo – quilombolas, ribeirinhas, indígenas e muitas outras – no grito pelo acesso à terra, da juventude que luta por um lugar nos bancos das escolas e academias e tantas violações aos seus direitos fundamentais. Se para uns é cansativo, para mulheres negras que desde sempre viveram e vivem sob a égide da discriminação dupla é algo devastador.
Importante é refletir sobre onde estão as mulheres negras hoje. Que espaços ocupam. Poucos, muito poucos.
A ausência de representação negra, principalmente da mulher negra nos espaços públicos, de poder, reforçada por estereótipos a invisibiliza cada vez mais. A ausência é visível. Historicamente inúmeras mulheres negras protagonizaram movimentos sócio culturais e foram pioneiras em lutas em defesa de direitos, trajetórias essas, em sua maioria, atreladas a lutas masculinas, todavia silenciadas e invisibilizadas. Nomes como Dandara, Luiza Mahin, Maria Firmina do Reis Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina, Virgínia Bicudo, para citar apenas alguns, foram forçosa e articuladamente deixados de lado. Mais recentemente o grito de Marielle foi silenciado mas passou a ecoar na voz de tantas outras. Tudo isso caracteriza e reforça a estrutura racista e sexista da sociedade brasileira.
Todavia, um bom caminho já se percorreu. A atuação dos movimentos antirracistas e da concretização do Feminismo Negro, pautando a mulher negra com suas peculiaridades, tendem a contrapor o olhar social impreciso e colonizado que marginaliza e estigmatiza a subordinação em contraposição a demais indivíduos. Diplomas legais como o Estatuto da Igualdade Racial, a própria Constituição Federal, que estabelece o crime de racismo como imprescritível e inafiançável, a lei 7.716/1989 (Crimes raciais), a lei 11.340/2006 (Maria da Penha), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial auxiliaram muito a luta dos negros e por óbvio da mulher negra. Tudo isso fruto de incansáveis e incessantes batalhas. Mesmo diante da farsa da democracia racial, o ativismo tornou-se algo mais potente, politizando o conhecimento e as frente de luta.
Lélia Gonzales, (1935/1994) intelectual, política, professora e antropóloga mineira, ícone na luta contra o racismo e o sexismo, descreveu que ”mulher negra e política, é uma união muito promissora. […] Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Isso faz com que as mulheres consigam enxergar a partir do seu local de pertencimento, quais as suas especificidades”.
Mesmo frente a todos os obstáculos, a mulher negra empreende suas lutas atingindo diretamente o próprio opressor em diferentes maneiras de atuação, seja nos quilombos em situações de posses que lhe são de direto, em bases comunitárias em contextos, principalmente, em que se inserem mulheres periféricas, no setor da saúde, em processos educacionais, de inclusão de pessoas negras nas universidades e de sua permanência.
A cor da pele da mulher negra não determina que ela é só a cor, que, por si só é um elemento que a caracteriza também gente, como humana e como tal tem capacidades e são também passíveis de respeito por ser quem são. Desta feita, à mulher negra cabe a continuidade na batalha, para que todos ocupem os lugares ou espaços de poder fortalecendo a luta por direitos que também são direitos humanos.
À comunidade em geral, cabe o entendimento, o conhecimento e principalmente, o posicionamento face as questões que estruturam e equilibram a sociedade. Pensar a diferença do ser mulher ou as diferenças do ser Mulher Negra é ousar visibilizar as lutas, entendendo que, estando na base da pirâmide social, a mulher negra ao movimentar faz com que toda estrutura saia da estagnação.
Referências:
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. S.Paulo: Boitempo, 2016 [1981].
GONZÁLES, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984.
Mapa da Violência 2019: Homicídio de mulheres no Brasil – ONU.
VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser Negro No Brasil Hoje. 11 ed. São Paulo: Moderna, 1994.
Cristina Tadielo é advogada civil e criminal, com ênfase em crimes raciais, violência doméstica, violência contra a mulher negra, professora, membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial OAB/MG e das Associações Nacional e Estadual da Advocacia Negra e Coordenadora do Grupo Temático Mulheres Negras da Comissão de Promoção da Igualdade Racial OAB/MG.