O apito de cachorro e a violência policial no Brasil

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Por Marco Rocha*

Apito de cachorro é uma estratégia política utilizada desde sempre para mandar sinais trocados para a população. É o bom e velho “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Esse conceito cai como uma luva para a estrutura de segurança pública que, no Brasil, desde o início do século XVI, foi estabelecida para a defesa de propriedade com a implementação das capitanias hereditárias. De lá pra cá, o DNA da força policial no país consolidou-se ainda mais no campo da repressão e da violência. Sempre com alvos muito bem delimitados pela classe social, gênero e, claro, pela cor.

A ideia de que a polícia existe para proteger os “cidadãos de bem”, o “patrimônio público” e as “elites” desse país, foi disseminada de forma muito competente ao longo de nossa história. Isso nos impediu de enxergar a verdade sobre o real propósito das forças de segurança, que é ser o braço armado do Estado brasileiro, prontas para usar a força bruta contra a parcela mais vulnerável da população, especialmente a juventude negra e periférica, para a garantia da proteção aos ricos, brancos e geograficamente privilegiados. Lembra do apito de cachorro? É sobre isso…

Policiais em uma comunidade do Rio de Janeiro /Foto: Fernando Frazão – Agência Brasil

As secretarias estaduais de segurança pública, as polícias militares, civis e federal são as fontes essenciais para o mapeamento da ação e efetividade das políticas de segurança pública no Brasil. Esses dados alimentam o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma ferramenta poderosa não apenas para a análise dos dados sobre a ação das políticas de segurança, mas também, permite avaliar os serviços prestados pelas polícias, os indicadores de violência, qual é a parcela da população mais afetada
por excessos das forças de segurança e etc. Esses dados permitem afirmar o que já sentimos na pele há séculos: as polícias atuam como moedores de carne preta e pobre nesse país.

O Estado de São Paulo, o mais rico da Federação, governado por Tarcísio de Freitas, expoente da direita extremada e bélica, é um excelente retrato de como o apito de cachorro é a grande estratégia utilizada para mascarar a truculência policial. Utilizando o discurso batido do “bandido bem é o bandido morto”, é fácil perceber os efeitos dos tempos em que vivemos quando o comportamento violento das forças policiais é inflamado por um discurso de ódio de líderes que surgem no cenário político utilizando o “nós contra eles” como bandeiras eleitoreiras e populistas. Provocando a falsa impressão de que o uso de força letal pelos agentes da segurança pública é para o bem de todos, o que justificaria o fato da polícia, cotidianamente, fazer uso da violência desmedida.

Fonte: Anuário Brasileiro da Segurança Pública, 2024

E não é à toa que num intervalo de poucas semanas vimos, aterrorizados, agentes da polícia de São Paulo criarem um repertório de terror que incluiu arremessar um homem de uma ponte, dar 11 tiros pelas costas de um homem que furtou um sabão, agredir uma senhora de 62 anos violentamente, dar um soco no olho de outra mulher, além de atuar no massacre provocado pela ação policial no litoral paulista no início de 2024. Nesse caso não há coincidências. É o apito de cachorro nas mãos de um governador que já afirmou reiteradas vezes que não há policiais corruptos e com má conduta na polícia de São Paulo e que são apenas agentes de segurança fazendo o uso da força para coibir a ação de “marginais”. O interessante é que essas ações violentas jamais acontecerão em bairros nobres como Moema, Jardins e Pinheiros, pois, como bem sabemos, o alvo é a periferia. Oalvo é a população pobre. O alvo é a população negra. E esses são fatos incontestáveis.

Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, por dia, 17 pessoas foram mortas por agentes policiais no Brasil. Chegando a 6.400 vítimas por ano. Desse número, 82,7% das vítimas são pessoas negras; 71,7% na faixa etária entre 12 a 29 anos e 99,3% são homens. Esses números terríveis representam um aumento na letalidade policial na ordem de 188,9% desde 2013, dados demonstrados na figura abaixo. O planejamento da repressão violenta e fatal da população negra, jovem e masculina é a pedra fundamental do tecido social brasileiro. E, na última década, com a expansão da extrema direita, tentativas de golpe de Estado e da desqualificação dademocracia, os filtros sociais foram abandonados sem pena. Não é por acaso que os casos de crimes de ódio como racismo, feminicídio (sobretudo praticados contra mulheres negras) e lgbtfóbicos explodiram absurdamente.

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Esse modelo social que celebra o “bandido bom é bandido morto”, perpetua o mesmo modus operandi utilizado na formação das Capitanias hereditárias, na criação da polícia militar com a chegada da família real ao Brasil em 1808 e na ampliação do poder das forças de segurança durante a ditadura militar. O Estado Brasileiro e seus comandantes, quase em sua totalidade, detestam negros e pobres e os dados sobre crescimento contínuo da violência comprovam isso de forma cristalina. E, para além dos números, uma constatação se impõe: o Estado adora exercer o poder de repressão. Vinte e sete estados, cada um com a sua polícia militar, civil e guardas municipais… E para que tantas polícias?

A resposta não é difícil. O objetivo é exercer poder através da repressão e violência. Basta constatar que o sucesso da extrema direita é a apropriação do discurso violento sobre a pauta da segurança pública. Despertando o medo coletivo para possam surgir como a solução para o estabelecimento da paz através da ação policial. Puro suco de um Brasil que avança de olhos vendados para a justiça social, para a manutenção de direitos humanos e para o respeito a diversidade, ignorando os direitos individuais garantidos pela Constituição Cidadã de 1988. E esse panorama não mostra nenhum indício de mudança. E assim deverá permanecer enquanto o Estado, ao menor sinal de ameaça, acionar o apito de cachorro que libera o seu braço armado para desempenhar a função para a qual foi criado: ser violentamente implacável contra as maiorias minorizadas desse país.

*Marco Rocha é biólogo, professor, palestrante, comunicador e pesquisador com mestrado em Biologia celular (Fiocruz), Doutorado em Biotecnologia Vegetal (UFRJ e University of Ottawa/Canadá), com Pós-doutorado em Plantas medicinais com atividade antiviral (Fiocruz), com dezenas de artigos e capítulos de livros publicados em literatura científica. Professor universitário a mais de vinte anos, atuando nos cursos da área de saúde das universidades públicas (UFF e UFRJ) e nas principais universidades privadas do Rio de Janeiro. Marco Rocha também é ator, escritor, comunicador e administra as mídias sociais @aquipensando01 onde promove divulgação científica, reflexões sobre o cotidiano, discussões sobre etarismo e ativismo antirracista. Autor dos livros @aquipensando01 – coleção instapoetas e co-autor do livro Pretagonismos.

    Marco Rocha

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    Marco Rocha é biólogo, professor, palestrante, comunicador e pesquisador com mestrado em Biologia celular (Fiocruz), Doutorado em Biotecnologia Vegetal (UFRJ e University of Ottawa/Canadá), com Pós-doutorado em Plantas medicinais com atividade antiviral (Fiocruz), com dezenas de artigos e capítulos de livros publicados em literatura científica. Professor universitário a mais de vinte anos, atuando nos cursos da área de saúde das universidades públicas (UFF e UFRJ) e nas principais universidades privadas do Rio de Janeiro. Marco Rocha também é ator, escritor, comunicador e administra as mídias sociais @aquipensando01 onde promove divulgação científica, reflexões sobre o cotidiano, discussões sobre etarismo e ativismo antirracista. Autor dos livros @aquipensando01 – coleção instapoetas e co-autor do livro Pretagonismos

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