“Não tem como retroceder”: ator Junior Vieira fala sobre negritude nas artes cênicas

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“Hoje, depois de quase 20 anos de carreira, consigo mudar algumas histórias, alguns personagens e mudar o olhar colonial e racista sobre algumas obras. Mas ainda falta, e muito!”, declarou Junior Vieira.

Ator e diretor audiovisual, Junior Vieira compartilhou acontecimentos que marcaram a sua vida antes e após se instalar no mundo artístico. Em entrevista exclusiva ao Notícia Preta, o ator compartilhou vivências e planos. “Minha família nunca viajou de avião, e há tempos não vão ao Maranhão, quero proporcionar pra eles essa viagem de presente”, conta.

Prestes a completar 36 anos, Junior Vieira fala sobre negritude nas artes cênicas – Foto: Divulgação

Embora tenha crescido no Morro do São João, na cidade do Rio de Janeiro, Valdenor Vieira Junior, 35 anos, nasceu no Maranhão – devido às bagagens de duas culturas tão diferentes, o ator se denomina “maranhoca”.

Vindo de família baixa renda, Junior falou sobre os impasses que poderiam o impedir de se tornar um artista. Aos 16 anos, quando teve sua primeira oportunidade de acessar o mundo das artes, ele acreditou que seria impossível dar seguimento à carreira.

Na época, vivia na periferia do Rio de Janeiro, onde ele e mais dois irmãos foram criados pela mãe; solo, trabalhadora doméstica e apenas um salário mínimo da época (R$240). Em meados dos anos 1990, a mensalidade do curso de teatro em uma escola do Rio de Janeiro era quase 20% mais alta do que a renda provida pela mãe de Junior, fator que tornava impossível o ingresso em uma escola de artes particular.

Ao ter conhecimento sobre a oportunidade de participar gratuitamente de duas aulas de teatro em uma escola profissional, Junior logo se interessou. O ator teve destaque nas primeiras aulas, porém, dar seguimento aos ensaios não se encaixava em sua realidade. “Eu fui para a terceira aula para avisar que não poderia continuar. Estava super sem graça (…). Ela [Andrea Avancini] insistiu para saber o porquê eu não ficaria. Eu contei pra ela que era filho de uma mãe solo, e que tinha além de mim, mais dois irmãos pra cuidar, e que minha mãe ganhava apenas um salário mínimo.”

Então, ao enxergar o potencial do ator e ver o maneira como ele se dedicava, a atriz Andrea Avancini, também professora de teatro e dona da Companhia permitiu que Junior Vieira realizasse as demais aulas gratuitamente. Andrea também apresentou o ator à Agência Mega Model.

Primeiros passos

Além de aulas de interpretação, Junior Vieira fez outros cursos na Casa e Companhia de Artes Avancini, uma das mais renomadas do Rio de Janeiro. Andrea adorava suas interpretações, então deu-lhe uma bolsa de estudos integral, a fim de assegurar que o jovem permaneceria na Companhia Avancini. “Acredito eu (posso estar enganado), mas se não fosse a Andrea Avancini, não sei se eu seria artista”, disse o ator e diretor audiovisual.

Indicação ao Festival de Gramado

“Aprendi com o Didi a ser mais determinado! Não desistir dos meus objetivos e saber que ao vencer, devo ajudar ainda mais os que estão na caminhada como estive”, comenta Junior Vieira sobre o personagem que interpretou em “O Último Animal”.

Dirigido pelo português Leonel Vieira, o longa “O Último Animal” foi indicado à categoria de Melhor Filme Estrangeiro pelo 50º Festival de Cinema de Gramado, que ocorreu em agosto deste ano. O personagem principal, Didi (Junior Vieira), é um jovem preto que nasceu e passou a vida inteira na favela. E com o tempo, Didi começa a buscar maneiras de sair do contexto em que foi inserido.

Foto: Divulgação

“Os eventos criminosos feitos por pessoas brancas de grande poder no país interferem e marginalizam ainda mais a favela. Pois os imigrantes que têm empresas e financiam o jogo do bicho, financiam a cocaína que vai parar nas comunidades cariocas, onde obtém milhões de reais em lucro. E por conta das drogas serem criminalizadas, alguém tem que sofrer as consequências. E adivinhar quem paga?”, comenta Junior Vieira sobre o filme indicado.

Preterimento no meio artístico

Ao iniciar carreira artística, Junior Vieira logo tomou conhecimento do impacto que a sua negritude marcava dentro desse espaço. O ator diz que, assim como a maioria dos outros atores pretos, seus primeiros papéis foram baseados em vivências marginalizadas e induzidas à criminalidade. “Eu comecei no boom do Cidade de Deus, onde colocar o cara preto no lugar marginal era comum”, diz Vieira. 

O ator relata ainda que perdeu um papel cênico em razão do número de seguidores no Instagram. “Fiquei bem triste! Me senti preterido, desrespeitado e que invisibilizaram a minha trajetória. Fiz bons testes, fui super elogiado e desde o princípio eles sabiam que eu não tinha centenas de milhares de seguidores”, conta o ator.

Por mais que o racismo ainda esteja presente em todas as estruturas da sociedade, Junior enxerga uma mudança positiva no cenário artístico. “No cinema, começa a se destacar grupos periféricos com autonomia e contando histórias com ineditismo. A pluralidade sobre determinado assunto está aí. A diferença é deixar que a gente conte as histórias sobre nosso ponto de vista. E não tem como retroceder. Daqui em diante, a ideia é dia após dias de progresso. E que a promoção da igualdade aconteça”, comenta o artista.

Co-direção em filme de Claudinho e Buchecha

Além de ator e roteirista, Junior Vieira já dirigiu diversos projetos. Atualmente, faz parte da co-produção de um dos filmes nacionais mais aguardados para 2023, “Nosso Sonho”. O longa documentará a história da dupla Claudinho e Buchecha, autores de hits que marcaram os anos 90, como “Só Love” e “Fico Assim Sem Você”.

Junior na cena do filme “Resgate” mostrando um dos castigos para negros escravizados: emparedar – Foto: Reprodução Instagram

Junior comenta sobre o filme tão aguardado, principalmente pela geração que testemunhou o auge da carreira dos cantores. “Estar junto com o Eduardo [diretor e roteirista] e o Leo [produtor] à frente dessa obra é uma honra. O que posso dar de spoiler é que todas as músicas são cantadas pelos atores que interpretam a dupla, Juan Paiva e Lucas Penteado.”, contou.

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Papéis monumentais

Em 2021, Junior Vieira representou a classe jornalística em uma novela da Rede Globo. O ator deu vida a Sinésio, um jornalista abolicionista no elenco de “Nos Tempos do Imperador”. Desde muito novo, o ator sentiu que o palco e set eram o seu lugar. Quando percebeu a magia que o teatro causava em sua vida, o ator decidiu que, independente das circunstâncias, viveria da arte. “Nos palcos eu me entregava (…). Sempre fui muito determinado.”, disse.

Ele também frisa a importância de construir relações e agarrar as oportunidades dentro do meio artístico. “Soube me vender bem (no bom sentido dessa frase) com muito respeito e cuidado, pois eu ofereço o meu trabalho, eu não peço”.

“Entender o seu valor e o seu diferencial, é o que faz com que queiram trabalhar com você ou não. Mas tudo com humildade e reconhecendo que sempre precisa aprender mais, tratar as pessoas como você gostaria que te tratassem”, complementa.

Valdenor Vieira Junior

Com exclusividade, Junior compartilhou fatos bastante curiosos de sua vida. “Sou irmão da minha mãe burocraticamente”, contou o ator. Contextualizando, ele disse ter sido registrado em cartório por seus avós, pois nasceu quando sua mãe tinha apenas 14 anos; vinha de família muito pobre.

Nascido em 13 de setembro, o virginiano possui forte apreço por frutos do mar, embora goste também de macarronada. Prestes a completar 36 anos, Junior (sem acento) Vieira diz que sua cor favorita é verde. E, talvez,  por causa disso um de seus super-heróis preferidos quando criança era o Hulk. 

Além dos personagens com superpoderes que marcaram a infância do ator, ele foi uma criança como todas as outras que cresceram na favela, jogava bola de gude e brincava muito na rua. Hoje, diante de toda a sua trajetória, o ator olha para si e repete o lema: “‘A colheita é obrigatória, o plantio opcional!’ Aí faço um questionamento: o que a gente tem plantado?”, finaliza Junior Vieira.

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