“Eu sou um mensageiro, um guardião”, diz Dom Filó sobre seu trabalho registrando a história e cultura negra

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Asfilófio de Oliveira Filho, mais conhecido como Dom Filó, dedicou e ainda dedica sua vida em prol da comunidade negra. Depois de atuar como um dos protagonistas do Movimento Black Rio, nos anos 1970, que movimentou artística e politicamente os jovens negros do Rio de Janeiro, Filó criou a Cultne TV, que possui o maior acervo virtual de cultura negra da América Latina.

Engenheiro civil, jornalista, produtor cultural, cine-documentarista e ativista. Dom Filó é tudo isso, mas em conversa exclusiva com o Notícia Preta, ele se autodenomina, principalmente, “um mensageiro, um guardião“, diante do seu trabalho não só como figura atuante, mas também como um documentarista da luta do movimento negro brasileiro, e da cultura afro-brasileira.

Minha missão nessa terra é exatamente trabalhar essa questão da negritude no audiovisual. Foi essa arma que me foi dada, e eu estou cumprindo essa missão criando esse acervo, essa plataforma, fazendo com que não só a comunidade negra mas toda a sociedade conheça a nossa história contada por nós“.

Dom Filó segurando o primeiro disco que ele lançou em 1974, junto com demais músicos que formavam com ele o grupo “Soul Grand Prix” /Foto: Angel Jackson – Notícia Preta

Antes de descobrir sua missão, o ativista conta como começaram seus questionamentos sobre a questão racial, e suas vivências. “Chego nesse mundo em 1949, momento em que o Brasil era considerado uma democracia racial, onde racismo era proibido falar“. Foi nesse contexto que Filó nasceu, no Rio de Janeiro, filho de uma empregada doméstica criada na Baixada Fluminense do Rio e de um mecânico e empresário mineiro, que saiu de seu estado para tentar a vida na capital carioca.

Ainda criança, Filó conta que já havia percebido o tratamento diferente direcionado às pessoas negras, mas por conta das limitações de discussão da época e das informações disponíveis na escola, a questão racial não era tratada abertamente, nem entre pessoas negras. “Até antes da minha geração, as famílias negras não admitiam questionar o racismo“.

Mas depois de morar com seus pais e irmã em uma ocupação no bairro de Botafogo, na zona sul do Rio, a família se muda para uma casa de vila no bairro do Rocha na zona norte, e em seguida, firmam residência no Morro do Jacaré, hoje conhecido como a Favela do Rato. Lá, seu pai montou primeiro uma oficina mecânica, e depois uma agência de automóveis.

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Depois de trabalhar com o pai durante a adolescência, enquanto fazia a escola técnica, Filó conta que ganhou um carro de seu pai, aos 18 anos, e logo em seguida, entrou para a faculdade, na década de 70. “Na família não tinha nenhum formado. Eu fui o primeiro a ter um curso superior. Eu chego nos quatro, cinco anos de faculdade já de carro, e pessoal não entendia nada. Pensavam: ‘esse cara é bandido?’, ‘jogador de futebol?’, ‘artista?’“.

Ao ver sua família melhorando de vida, saindo de seu espaço comum e adentrando outros locais, em que a maioria das pessoas era branca, foi que a indignação com relação ao racismo, começou a ganhar força. “O letramento racial nasce com 17 anos, e aflora para uma implosão que causa indignação, raiva, e ao mesmo tempo, força de mudança e eu começo a querer mudar o mundo individualmente, com embate com a branquitude racista que ficava pra morrer vendo um preto com um carro. Mas eu nunca me desliguei da minha comunidade“.

Quando começa o Movimento Black Rio

Enquanto conciliava os estudos com o estágio, Dom Filó começava a criar seu relacionamento com os grandes nomes da cultura negra da época.

Eu saia da faculdade e ia direto para Copacabana, onde um dos bares que a galera preta se reunia, sambistas e músicos como Jorge Benjor, Tim Maia, e outros. E dentro desse rolê eu começo a me inteirar com essas pessoas, sempre com o samba sendo a minha base. Meus amigos eram Roberto Ribeiro, Candeia que me dava uma moral, Elizeth Cardoso, galera do Fundo de Quintal“, relembra Filó, que naquele momento, foi criado um espaço especial para a comunidade, na zona norte da cidade.

Ao mesmo tempo eu formo o Renascença Clube. Esse clube formado por negros e para negros, por conta do racismo, e eu chego lá aos 19 anos e vejo aquele clube só de preto, fora do ambiente da comunidade. Aquilo ali foi um despertar pois ali a gente concentrava a cultura, o viés política e consequentemente, o letramento racial. Então tivemos esse espaço, enquanto jovens, de colocar pra fora toda aquela raiva“, conta o ativista.

Segundo ele, uma das principais funções daquele espaço era conscientizar os jovens negros, das mazelas do racismo, e como lutar contra elas. “O papo não era muito intelectual não, era entrar e fazer. O intelectual viria mais tarde. E nessa época, chegava nas rádios a Soul Music, tinham as reuniões chamadas ‘radiolas’, que mais tarde seriam fundamentalmente os bailes. Já haviam bailes, mas eram mais de dança, mas já estava muito careta, a gente queria mais“.

Utilizando desse movimento que já começava a crescer, Filó conta que o Renascença criou um evento que chamava os jovens para ver um filme, ouvir uma música, depois de uma palestra sobre temas importantes para a população negra. Com pessoas de todos os lugares do Rio, em pouco tempo o local virou um símbolo do encontro da comunidade.

Virou um point, e depois virou um baile, que era a Noite do Shaft, que se torna o grande baile pois o som era bom, clube só de preto, autoestima pura, pura inovação pois a gente fotografava e no outro dia sua foto estava lá no paredão, e conseguimos fazer com isso, elevar a autoestima“, conta Filó, que relembra que junto dele nessa jornada estavam o ator Aroldo de Oliveira, o especialista em imagens Almir de Almeida, Maneca e outras figuras.

Filó conta que depois de uma reformulação, foi criado o ‘Baile Soul’. “Era o baile da autoestima, que vinha pela estética das capas de disco, das revistas, da música, e de 72 a 74, depois de sair do Renascença Clube, com uma nova roupagem. Tive que mudar algumas coisas, pois nossa cultura musical, política e visual era muito agressiva para os setores não negros“.

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Os desafios políticos e novos caminhos

Nessa época, a luta pela valorização da cultura negra se misturava com a luta pela sobrevivência, em plena ditadura militar. “A gente sofreu bastante com a repressão policial que era cotidiana. Todos sabem o quanto os negros sofreram naquela época. E consequentemente aquele que se opunha, sumia do mapa“. Filó conta que nessa época importantes nomes como Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento se articulavam em várias frentes.

Ele conta que se escondeu o quanto pôde, mas chegou a ser preso durante a ditadura. “Você imagina em um momento de ditadura, que 5 mil, 8 mil pessoas se reuniam para festejar a negritude, clandestinamente. Eles descobrem em 74, 75, por conta da explosão do soul. Mas ai me pegaram. Não conseguiram provar nada, foi só um susto“.

Em 1974 ele lança o disco ‘Soul Grand Prix‘, que segundo Filó, “exalta a mulher negra e tem uma estética afrofuturista“. Nessa época, ele conta que eles ganharam o Brasil, com o disco sendo um sucesso de vendas. Filó, que chegou a exercer a carreira de engenheiro enquanto fundava o Movimento Black Rio, conta que o que aprendeu com seu pai e com a engenharia, o ajudou a administrar esse momento.

Mas em em 1978, Filó se afasta do movimento, por conta da pressão política, e vai para os Estados Unidos. Entre idas e vindas entre o Rio de Janeiro e o Harlem, bairro de Nova Iorque onde ficou morando nesse período, é que ele começou a introduzir o elemento visual como sua mais nova arma de valorização da cultura negra.

Volto para o Brasil, trago esse equipamento que na época era em VHS, e começo a registrar as primeiras manifestações do movimento negro no Brasil, e me tornei um especialista. E por isso hoje, as novas gerações chegam com uma referência“. E assim, a partir de 1980 é criado a Cultne TV, dedicado à Memória e História da População Negra, com o maior acervo desse tipo de conteúdo, da América Latina.

Direcionamentos para a juventude negra atual

A ancestralidade está trabalhando a nosso favor. Chegou o momento de que o orgulho de ser negro, seja elevado a uma altura muito grande. Hoje vemos negros nas mídias, nas telas, algo que não acontecia há 50 anos para mim. Mas isso não significa que estejamos bem ainda”, diz Filó, que explica o que ainda é necessário conquistar:

“Precisamos ter o controle do dinheiro, das narrativas e principalmente, das produções. Então eu acho que o grande lance hoje é informar o mais rápido possível, a juventude, que nós estamos em evolução, e que precisamos conhecer mais“, diz Filó que aos 73 anos, garante que o lugar que a população negra hoje só possui certos direitos, por conta da luta dos que vieram antes. “Graças ao Movimento Negro, a comunidade negra hoje está em outro patamar“.

Filó continua atuando em prol da memória e valorização da cultura e história negra com a Cultne TV /Foto: Angel Jackson – Notícia Preta

Por isso, Filó afirma que entende que a juventude hoje se mobiliza usando a tecnologia, mas que “nada se compara ao corpo a corpo” das manifestações. Ele explica então, que as juventude negra precisa se inspirar no que a sua geração fez, se educar e complementar o conceito de Sankofa. Ele explica o que isso significa:

Ir lá atrás, buscar a informação e a referência, trabalhar hoje ressignificando toda essa experiência, e projetar para o futuro. É isso que eu venho fazendo. Eu já estou passando o bastão, mas muito satisfeito pois eu consegui construir uma família, evoluir do ponto de vista mental e espiritual, e equilibrar tudo isso no meu corpo ai com 73 e ainda conseguir produzir. E eu sempre vou buscar no coletivo, pois individualmente não tem nada para fazer“, conlui Filó.

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Bárbara Souza

Bárbara Souza

Carioca da gema, criada em uma cidade litorânea do interior do estado, retornou à capital para concluir a graduação. Formada em Jornalismo em 2021, possui experiência em jornalismo digital, escrita e redes sociais e dança nas horas vagas. Se empenha na construção de uma comunicação preta e antirracista.

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