“Quanto mais espaço a gente ocupa, mais a gente se representa”, afirma atriz Ester Dias

WhatsApp-Image-2022-10-20-at-18.14.39-1.jpeg

Ester Dias conversou com a reportagem do NP e ressaltou a importância da busca e criação de espaços

Depois de dar vida à delegada Glória, na série “Bom dia, Verônica”, da plataforma de streaming Netflix, e à Cândida, na novela “Pantanal”, da TV Globo, a atriz carioca Ester Dias protagoniza o sexto episódio da série “Cinema de Enredo”, do canal Prime Box Brazil, intitulado “Um Herói, Um Enredo, Uma História de Amor”, onde ela interpreta Heloísa. Na trama, Ester e o ator Paulo Lessa vivem um amor afrocentrado e ela revela que é a primeira vez que vive um par romântico com um homem negro. 

“Nossa esse trabalho foi muito especial, justamente, por eu ter tido oportunidade de estar fazendo uma história de amor, né? É a primeira vez que eu consigo fazer um par romântico com um homem negro. Eu e o Paulo somos amigos há muitos anos, e lembro que anos atrás a gente sempre brincava de que nunca íamos fazer um trabalho juntos porque um de nós dois vai ser a cota, né?”, revela. 

A atriz contracenando com Paulo Lessa na série “Cinema de Enredo” – Foto: Felipe O’Neill/Divulgação

Ester lembra ainda que o chamado “tokenismo”, quando uma pessoa é utilizada para representar determinado grupo, faz com que os espaços não sejam ocupados como deveriam ser e vai mais além. Ela lembra que é preciso criar esses espaços. “Quanto mais espaço a gente ocupa, mais a gente se representa, mais pessoas se movimentam e a gente começa a tirar da naturalização esse olhar de que existem espaços que a sociedade separou pra gente. Que a gente pode, sim, cavar os nossos espaços e criar os nossos próprios espaços”, analisa. 

Ester lembra também que a personagem Heloísa, que estreou nesta quarta-feira (19) na Mostra Cine Afro Zózimo Bulbul, é um dos papéis mais importantes de sua carreira, até por ser a primeira protagonista. “Tem toda uma responsabilidade, foi minha primeira protagonista na TV, mas é uma personagem muito potente, é uma história de amor e é uma história muito bonita. Então, eu precisei ter toda uma preparação para fazer parte dessa história, para estar me colocando nessa personagem que eu tenho muito carinho, muito carinho, e eu tô louca para ver o resultado pronto”, celebra.  

“Foi um dos trabalhos mais desafiadores, sabe? De poder tá ali, contando a narrativa pelo nosso olhar, pelo nosso referencial, do povo preto. E é muito legal poder falar de amor, isso nos humaniza, a gente não precisa estar falando racismo o tempo todo”, completa.  

Sororidade

Um levantamento realizado a partir de dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, revela que, até julho deste ano, mais de 31 mil casos de violência doméstica foram registrados no Brasil. Além disso, foram 169 mil denúncias de violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres. A segunda temporada da série “Bom dia, Verônica” retrata casos de violência doméstica e tráfico de mulheres. 

Ester deu vida à delegada Glória, em “Bom dia, Verônica” – Foto: Laura Campanella/Divulgação

Ester, interpretando a delegada de mulheres, Glória, em um dos episódios “libera” Verônica, interpretada pela atriz Tainá Müller, que era procurada por assassinato de um policial corrupto e que assassinou seu pai. Ela ressalta que, em alguns momentos, a sororidade fala mais alto que a legislação. 

“Eu teria a mesma sororidade da Glória porque, nesse caso, ela agiu com bom senso, com sensibilidade, com a intuição dela, que é muito mais de cuidar de outra mulher do que manter a lei. É claro que a Lei precisa ser mantida, mas, nesse lugar,  quando a Glória libera a Verônica, coloca a proteção dela acima de qualquer situação. É o momento humano e isso enriquece demais as personagens”, comenta.   

Esporte e educação

Além de atriz, Ester Dias também já foi atleta profissional e, atualmente, ainda pratica atletismo, mas de forma mais esporádica. Ela lembra quando completou a primeira maratona, de 42 quilômetros, a emoção do momento e todo o processo que ela passou. 

“Você começa a ter um profundo conhecimento sobre si mesma, seu corpo, sua resiliência, seu psicológico. Você precisa ter a cabeça muito bem trabalhada. Na verdade, a gente precisa do trabalho de corpo e mente. A gente precisa do treinamento físico, mas o que te faz terminar uma maratona, fundamentalmente, é o psicológico, porque você corre mais de 4 horas”, reflete. 

“Completar 42 km foi uma experiência que eu não tenho palavras para definir, foi muito especial”

Ela ressalta a importância dos projetos sociais para inserção de jovens negros e periféricos em estruturas esportivas, como é o caso do atletismo. “Eu fui bolsista de um projeto social de atletismo e também ganhei bolsa na escola. Eu não tinha ciência do que era preconceito, mas já sentia me tratarem diferente, que eu não me encaixava naquele meio”, relembra. 

Leia também: ”Quero voltar a treinar”, diz ginasta Angelo Assumpção, sem clube desde 2019 após ser demitido por denunciar racismo

“O esporte no Brasil ainda precisa ser muito muito incentivado. A gente tem atletas com capacidades absurdas. Muitas delas que alcançam espaços só conseguem por mérito próprio, em função de um desgaste, de um sofrimento grande. A gente precisa ter cuidado para não romantizar esse sofrimento, a dificuldade de alcançar os espaços”.

Ester completou os 42 km da maratona do Rio em junho de 2019 – Foto: Reprodução/Redes sociais

Ainda sobre esportes, Ester ressalta a importância de políticas públicas que possam potencializar esses talentos periféricos, uma vez que o poder público nem sempre atende às expectativas das comunidades e de quem vive nelas, mas também faz um alerta sobre essa visão entre pessoas negras e esportes. 

“A minha única preocupação é que a gente acha que o negro só é capaz de vencer enquanto esportista. Não podemos colocar o negro na caixinha, só do tipo físico. A gente também precisa entender que temos todas as aptidões possíveis, podemos ser o que a gente quiser, seja na escola, na academia, sendo intelectual, sendo um pesquisador, cientista, etc.”, enfatiza. 

“A gente tem direito e tem a possibilidade de ocupar os espaços. A dificuldade que a gente tem são as barreiras sociais e raciais” 

Passado e futuro

A atriz revela ainda que seu foco para o futuro é estudar roteirização e poder continuar contando histórias do povo preto, poder mostrar a narrativa de quem sempre foi relegado, inclusive o direito de estudar. “Tenho muita vontade de estudar roteiro e quero criar personagens cada vez mais complexos, com cada vez mais camadas, com cada vez mais histórias, cada vez mais humanizados. Precisamos tirar o povo preto dessa invisibilização, não podemos naturalizar essa falta”, diz. 

“Só a gente sabe o quanto é difícil crescer em uma sociedade que diz pra gente que não somos suficientes, que não somos bonitos, que estamos num lugar de categoria menor”, finaliza.

Igor Rocha

Igor Rocha

Igor Rocha é jornalista, nascido e criado no Cantinho do Céu, com ampla experiência em assessoria de comunicação, produtor de conteúdo e social media.

Deixe uma resposta

scroll to top