Diretora e roteirista, Gautier Lee se propõe a levar para as telas aquilo que não viu a vida inteira: ela mesma. Seu amor pelo audiovisual, junto de sua vivência como uma pessoa negra e queer, se reflete em produções, histórias e personagens diferentes dos quais consumiu quando era criança e adolescente, o que torna tudo ainda mais especial para ela.
“Todas as minhas criações são inspiradas em quem eu fui ou quis ter sido durante a minha infância e adolescente. Hoje eu escrevo as histórias que eu gostaria de ter lido ou assistido naquelas épocas. E eu sinto que isso me ajuda a imergir nas minhas histórias por eu lembro que preciso honrar a criança e a adolescente que eu fui porque elas que me fazem ser a profissional que eu sou hoje“, explica.
Nascida e criada em Angra dos Reis, na Costa Verde do estado do Rio de Janeiro, a roteirista conta que foi uma criança, que diferente das outras, gostava de fazer planilhas sobre “qual desenho estava no ar em qual canal em qual horário“. Ela conta que uma de suas lembranças da época era sue pai brigando dizendo que “televisão só dava dinheiro pra quem trabalhava nela“. “Hoje em dia eu concordo com ele“, diz ela.
Mas Gautier também se lembra de como foi seu período de autodescoberta, durante essa época. “Enquanto adolescente eu fui me apaixonando por narrativas teens, amor que dura até hoje. E me entender queer no meio disso tufo foi uma grande confusão que eu tô tentando organizar até hoje. Mas essas vivências me permitem navegar por lugares muito únicos dentro dos meus projetos e trazer uma perspectiva que se diferencia“.
Gautier, hoje com 30 anos, já trabalha com audiovisual desde os 17 anos, mas conta que só começou a ganhar dinheiro mesmo com isso, aos 26. “Eu sempre fui uma consumidora assídua de obras audiovisuais, desde animes até séries policiais. E esse fascínio foi o que me levou a transformar o hobby em ofício. Eu sempre soube que queria ser roteirista“, conta ela, que cita produções como o filme High School Musical, que despertou sua paixão por narrativas teens e infanto-juvenis.
Hoje, Gautier tem várias obras no ar em grandes plataformas de streamings como Amazon, Netflix e Globoplay como a recém lançada série “B.O“, da qual faz parte como uma das roteiristas, inspirada em séries como a famosa “Brooklyn 99”. Atualmente, ela assume a direção do documentário “Pajubá”, que registrou depoimentos de pessoas trans de diversas regiões do Brasil, para dar visibilidade às suas vivências e desafios enfrentados.
Além disso, a diretora e roteirista também já foi premiada nas categorias ‘Melhor Filme’, ‘Melhor Direção’, ‘Melhor Montagem’ e ‘Melhor Atriz’ no Festival de Gramado em 2021, com o curta “Desvirtude”, do qual foi diretora.
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A profissional negra e não binária, também faz parte da Organizations of Black Screenwriters (A Organização dos Roteiristas Negros) nso Estados Unidos. Ao ver sua carreira ganhando grandes proporções, a profissional conta que muitas vezes demora a acreditar nas conquistas.
“Às vezes parece que a ficha não caiu ainda. Eu tenho tido conquistas que eu achei que demoraria 15 ou 20 anos de carreira para alcançar. E ainda existem mais novidades que viram em breve e que eu não tenho autorização pra compartilhar. Mas no geral eu ainda tô me acostumando a ser bem sucedida, ninguém nos ensina isso afinal o sucesso geralmente é tido como algo que “não combina” com pessoas negras“, pontua.
E sobre ocupar esse lugar de uma das poucas roteiristas e diretoras negras no mercado, Gautier conta que tem seus dois lados. “É um lugar agridoce. É sempre ótimo alcançar esses lugares que por muito tempo foram negados para pessoas negras, mas ao mesmo tempo também é dolorido se perceber como uma de poucas (e às vezes até a única) pessoas negras em uma produção audiovisual“.
De modo geral, focada em suas obras, Gautier ressalta como espera que elas impactem o público. “Eu espero que o meu trabalho faça as pessoas rirem. Pra mim o riso é a maior e melhor forma de defesa. E esse foi um dos motivos que me fez querer explorar os caminhos da comédia“, conta ela, que atualmente tem como referência nesse meio Quinta Bruson, Paulo Viera, Bruna Braga e Nathalia Ponto Cruz.
Grandes Projetos
Para seguir seu sonho, Gautier cursou Produção Audiovisual em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ela conta que a transição foi a de como qualquer outra pessoa que sai de seu estado para outro: difícil. Mas ela conta que isso a ajudou. “Apesar dos muitos desafios, também foi uma experiência que me fez crescer muito tanto enquanto pessoa como enquanto artista“.
Mas depois de um tempo, fincou raízes, e ao terminar a faculdade decidiu permanecer na cidade gaúcha, e acabou criando junto de outras pessoas o ‘Macumba Lab’, um coletivo de profissionais do audiovisual negro no Rio Grande do Sul.
“O coletivo surgiu em 2018, logo depois do festival de cinema de Gramado, onde havia uma presença minúscula, quase inexistente, de pessoas negras. O coletivo se iniciou como um grupo de estudos de roteiro, mas aos poucos fomos percebendo que o “grupo de estudos” havia se tornado também um lugar de acolhimento. Profissionais de outras áreas se juntaram a nós e disso nasceu o Macumba Lab“.
Mas os filmes e séries não são suas únicas criações. Não satisfeita em ganhar prêmios, Gautier Lee resolveu criar o seu próprio, chamado “Fade to Black”, voltado para a comunidade negra.
“Eu sempre amei festivais de cinema. Estar reunida com outros profissionais do mercado nos permite ter trocar entre profissionais estreando e experientes, além de reunir pessoas de diversas partes do país. Mas a maioria desses festivais são feitos por e para pessoas brancas e foi disso que nasceu a ideia do ‘Fade to Black’. A meta era que fosse um espaço de celebração de obra negras e artistas negros e eu, particularmente, acho que vencemos essa meta com louvor“, conta.
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