Entre a solidariedade e a ausência do Estado: o papel das ceias solidárias no Brasil

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Ceias solidárias se transformam em uma rede de apoio emergencial para milhões de brasileiros que vivem a insegurança alimentar

Todos os anos, especialmente no período do Natal, iniciativas de ceias solidárias se multiplicam em comunidades de todo o país. Organizadas por ONGs, coletivos periféricos, igrejas e movimentos sociais, essas ações oferecem refeições completas a pessoas em situação de insegurança alimentar, uma realidade que ainda afeta milhões de brasileiros.

Ainda que pesquisas e metodologias variem, os números dão dimensão do desafio: milhões de brasileiros convivem com incertezas sobre sua próxima refeição, e cerca de 2,5 milhões de famílias viviam com insegurança alimentar grave em 2024, segundo levantamento do IBGE, um nível no qual a fome deixa de ser só risco e se torna experiência vivida no dia a dia.

Nesse contexto, as ceias solidárias se transformam em uma rede de apoio emergencial. Elas não apenas oferecem alimento no curto prazo, mas também constituem pontos de encontro comunitário, diálogo e mobilização. Na prática, funcionam por meio da arrecadação de doações, financeiras ou de alimentos e da mobilização de voluntários para a produção e distribuição de refeições completas. Em muitos territórios, essas ações são baseadas em mapeamentos locais e no contato direto com famílias que enfrentam a fome de forma cotidiana.

Para a pesquisadora Ingrid David, mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos e doutora em Filosofia, o protagonismo dessas iniciativas revela tanto a potência da sociedade civil quanto as limitações das políticas públicas no país. “As políticas públicas voltadas ao enfrentamento da fome no Brasil ainda operam, majoritariamente, em uma lógica emergencial e compensatória, especialmente nos territórios periféricos e entre a população negra, que historicamente concentra os maiores índices de insegurança alimentar”, analisa.

Rio de Janeiro – ONG Ação da Cidadania lança campanha Natal Sem Fome no Aterro do Flamengo, zona sul da capital fluminense (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Embora programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, tenham sido fundamentais para reduzir a fome no país, Ingrid ressalta que eles não são suficientes para enfrentar suas causas estruturais. “Atacar as causas da fome, como o desemprego e a informalidade, é fundamental para conferir perenidade a cenários de segurança alimentar”, afirma.

Nesse contexto, as organizações da sociedade civil assumem um papel central. Segundo a pesquisadora, essas entidades conseguem acessar realidades que muitas vezes escapam ao Estado. “Por estarem mais próximas dos territórios e das populações afetadas, produzem diagnósticos mais precisos da realidade local e constroem respostas mais adequadas às necessidades concretas das pessoas”, explica. Além do atendimento imediato, essas iniciativas também atuam politicamente, ao pressionar o poder público e reafirmar a fome como uma violação de direitos humanos.

O crescimento das ceias sólidarias no Natal e o mito de que a fome tem época do ano

O crescimento das ceias solidárias no Natal não é aleatório. Do ponto de vista sociológico, Ingrid aponta que a data está inserida em uma moral coletiva amplamente compartilhada. “Há uma ‘culpa cristã’ mesmo entre pessoas que não se identificam como religiosas. O Natal é historicamente associado a valores como empatia, generosidade e compaixão”, diz. Esse imaginário de recomeço e redenção reforça comportamentos solidários e legitima campanhas de doação.

Ainda assim, há contradições. A concentração da solidariedade em datas específicas pode reforçar a ideia de que a fome é uma exceção. “Quando a solidariedade se concentra em datas como o Natal, corre-se o risco de reforçar a narrativa de que a fome é episódica, quando, na realidade, ela é cotidiana para milhões de pessoas”, alerta Ingrid. Muitas famílias vivem em insegurança alimentar crônica, com acesso limitado a uma refeição diária ou menos.

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Quem são as pessoas que precisam das ceias solidárias

As desigualdades raciais e territoriais também atravessam quem doa e quem recebe. “A população que vivencia a fome no Brasil é majoritariamente negra e residente de territórios historicamente vulnerabilizados, enquanto os grupos com maior capacidade de doação tendem a ser brancos e das classes média e alta”, observa. Para ela, essa dinâmica escancara o racismo estrutural que organiza a sociedade brasileira e distribui, de forma desigual, tanto a escassez quanto os privilégios.

Apesar disso, a pesquisadora destaca a solidariedade que emerge também entre quem tem pouco. Exemplos recentes, como as mobilizações durante a pandemia da Covid-19, as enchentes na Bahia em 2022 e no Rio Grande do Sul em 2024, mostram a alta capacidade de empatia das populações periféricas.

Para Ingrid David, a recorrência das ceias solidárias no Natal diz muito sobre o país. “Ela revela um Brasil fortemente mobilizado por valores morais e simbólicos, mas que ainda falha na construção de respostas estruturadas e contínuas para problemas históricos como a fome”, conclui. “O combate à fome e ao racismo deveria ser uma agenda transversal e civilizatória, de toda a sociedade.”

Layla Silva

Layla Silva

Layla Silva é jornalista e mineira que vive no Rio de Janeiro. Experiência como podcaster, produtora de conteúdo e redação. Acredita no papel fundamental da mídia na desconstrução de estereótipos estruturais.

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