Por Tiago da Silva Cabral*
O assassinato de George Floyd em 25 de maio deste ano parece ter sido a gota d’água para a sociedade americana que mais uma vez vê um corpo negro sendo vítima do racismo estrutural que segrega e mata culminando até o momento numa das maiores ondas de protesto que os Estados Unidos já viu. E isso fez com que as pessoas no Brasil que vêem homens, mulheres, famílias e até mesmo crianças sendo assassinadas pelo estado questionassem uma aparente passividade dos movimentos sociais diante do verdadeiro genocídio negro sistematizado que acontece no Brasil.
Porém a realidade geralmente não é simples e precisamos entender alguns pontos históricos ao fazer uma análise psicossocial das tragédias negras americanas e brasileiras, afinal de contas nós enquanto sujeitos somos atravessados por forças biológicas, psicológicas e sociais e o presente artigo visa analisar este fenômeno através de uma ótica contextualizada e não apenas dissecar de forma fria os fenômenos psicológicos que a compõem.
Primeiramente, dizer que não há resistência é desvalorizar os esforços atuais e históricos.
A luta do povo negro no Brasil é notória e dizer que aqui não há resistência é cometer uma injustiça. Porém é compreensível pensar assim diante da desinformação e dos esforços históricos feitos no sentido de minimizar e quando possível apagar completamente a luta negra ajudando assim a alimentar o mito da tão conveniente democracia racial.
Ainda no momento atual há diversos esforços em combater o racismo sistêmico no Brasil que são sufocados diariamente. Temos de lembrar que este é um país que condena qualquer forma de expressão que se apegue a contextos afrocentrados, seja através da demonização, repressão cultural ou até mesmo a repressão física dos corpos que a executam como podemos ver em casos em que artistas, líderes comunitários e semelhantes são presos simplesmente por se expressarem.
Observar o racismo cordial é essencial para entender o que está acontecendo.
Como é amplamente sabido por todos aqueles que têm o que chamamos de consciência racial, no Brasil a estrutura social tenta negar o racismo mantendo a hierarquia racial mas sem mencioná-la ou quando possível negando. Para a psicologia é fato que comportamentos os quais não conseguimos trazer para o campo simbólico se tornam automatizados. Portanto quando não se fala de racismo o praticamos de forma automática e sem ter consciência dele o que torna o combate a este comportamento nocivo extremamente mais difícil. Não é incomum o fenômeno o qual a vítima de um abuso acaba por absorver essa violência aceitando-a como algo trivial ou mesmo como parte do processo de se viver. Portanto como combater um crime quando nem entendemos que este acontecimento é um crime?
Negar o racismo impede a coesão grupal e a formação de uma identidade negra.
Em “Tornar-se Negro” a autora Neuza Santos nos diz que o racismo sistêmico faz com que a identificação como pessoa negra na nossa sociedade acabe se tornando motivo de sofrimento para o sujeito e acrescenta que “o pensamento cria espaços de censura à sua liberdade de expressão” observando ainda sempre que o direito à identidade negra sempre foi negada ao brasileiro.
Em psicologia social é importante destacar que o conceito de grupo compreende um conjunto de sujeitos com características e um objetivo em comum. Ao criar uma sociedade que nega a identidade negra o racismo sistêmico desencoraja a identificação com o outro e o sentimento de pertencimento a um grupo.
Além disso existe o processo de coesão grupal que pode ser reforçado por, além das características em comum entre seus membros, o forte senso de quem não faz parte do grupo. Sendo que o racismo cordial cria essa ilusão do jargão “somos todos brasileiros”, impedindo assim a identificação do negro como sujeito com consciência racial.
É por isso que o processo de aniquilação histórica da cultura africana têm tantas consequências para o povo negro no Brasil.
Mas então, por que o mesmo não acontece nos EUA – ou se acontece, por que teve menos impacto na formação da identidade negra?
Comparar o processo de surgimento de duas sociedades tão distintas quanto a brasileira e a americana é um exercício que tende a erros. Porém acreditamos que há pontos onde podemos observar situações que tornam o contexto norte americana diferente da nossa.
Um desses fatores é a segregação aberta. Nos Estados Unidos houve historicamente um exercício declarado de segregação inclusive sendo tema de uma guerra civil durante a formação do país. Principalmente nos estados ao Sul, o racismo aberto e declarado facilitou a identidade racial e a formação de grupos de acordo com o mecanismo que já expomos.
Outro motivo que podemos especular pode ser o pensamento não colonial, afinal de contas, mesmo sendo um país colonizado, o mito fundador estadunidense reforça muito mais um sentimento de independência e uma não referenciação a uma “capital cultural” como é o caso do pensamento colonialista.
Em Necropolítica, o autor Achille Mbebe descreve esse pensamento colonialista que rotula uma periferia como tendo por único desejo se aproximar do centro, da capital, uma periferia que é vista como bárbara e desumana, um rótulo que podemos ver facilmente sendo aplicado a países do dito “terceiro mundo” como é o caso do Brasil e que não é possível para nós enxergar nos Estados Unidos que por vezes se pressupõe até mesmo como uma “capital do mundo”.
Em resumo chamar de “passividade” o comportamento da sociedade brasileira é um ato cruel.
Destacando que tudo que acontece no Brasil demanda sim uma reação muito maior do que a que estamos vendo, chamar de “passividade” a reação da sociedade brasileira é desconsiderar uma gama de processos complexos que foram criados na base histórica da nossa sociedade.
É importante ter em mente que talvez alegar que o povo negro reaja com passividade a violência é fomentar um arquétipo clássico do racismo de que o sujeito negro talvez “queira” ocupar a posição que a sociedade oferece a ele. Além de tudo podemos estar também culpabilizando as vítimas do racismo esperando que as mesmas resistem mesmo quando isso não é possível e tirando a culpa do estado e da sociedade.
É importante ter em mente que todo dedo que se aponta para a sociedade brasileira é um dedo que apontamos para nós mesmos, nossas feridas e histórias. É sim necessária uma reação urgente, um basta a todo derramamento de sangue negro que acontece todos os dias, porém enquanto não construirmos isso de forma coletiva, somando-nos uns aos outros e não apenas ofertando críticas, é que conseguiremos entender os processos que matam nossos irmãos e irmãs e poderemos assim construir estratégias para saná-los.
*Tiago da Silva Cabral é psicólogo social atuando na área de políticas públicas há quase 10 anos além de professor e escritor.
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