“A crise da segurança pública no Nordeste é reflexo de um projeto falido de combate à violência”, diz especialista

Policia-Militar-Bahia.jpeg

Estado do Nordeste domina ranking de cidades mais perigosas

Segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, divulgado nesta quinta-feira (24), o ranking dos 10 municípios mais violentos do Brasil é composto exclusivamente por cidades nordestinas. Das cidades presentes na lista, cinco estão localizadas na Bahia, três no Ceará e duas ficam no estado de Pernambuco.

O sociológo e especialista em geopolítica, questões raciais e políticas públicas, João Saraiva, explicou ao NP que o cenário visto no anuário não é inesperado e que na verdade os dados revelam um fenômeno que tem crescido nos últimos anos, a interiorização da violência social.

“O que estamos vendo agora é o agravamento de um processo que combina, pelo menos, três fatores: ausência histórica de políticas públicas estruturantes, avanço territorial das facções e uma política de segurança pública que apostou demais em repressão e de menos em prevenção“, afirma João Saraiva.

Anuário Brasileiro de Violência Pública revela que cidades mais violentas do país estão no Nordeste – Foto: Polícia Militar da Bahia – PMBA/ reprodução

O Anuário revelou que as cidades que compõem o ranking apresentam níveis elevados de violência letal, associado a disputas entre facções do crime organizado pelo controle do tráfico de drogas. João alerta que o domínio não é somente do tráfico nessa regiões e que o crime organizado também ocupa o lugar do Estado.

A disputa entre facções, inclusive entre organizações que vieram do Sudeste e outras criadas localmente, tem sido marcada por uma lógica de dominação territorial. E aqui é importante dizer: esse domínio não é só do ‘tráfico’. As facções ocupam o lugar do Estado, o que se torna um sinal de ainda maior alerta. Essas organizações impõem toque de recolher, oferecem proteção ou punição, e acabam definindo a vida social. Isso é gravíssimo, porque transforma a periferia em zona de exceção: um território onde a autoridade pública perdeu o controle e a regra do medo passou a organizar o cotidiano

Para o sociólogo, fica claro que a responsabilidade da crise de violência no Nordeste se dá pelo projeto nacional mal sucedido de segurança do Estado.

A crise da segurança pública no Nordeste é, portanto, reflexo de um projeto nacional falido de combate à violência. Um projeto que se recusa a ver que segurança de verdade só se constrói com dignidade, com política habitacional, com educação de qualidade, inclusão produtiva, com presença cultural e com políticas específicas para juventudes negras e periféricas. Enquanto isso não mudar, as facções vão continuar tomando conta desses espaços

João Saraiva também alerta que a violência vem sendo alimentada historicamente pela política de segurança.

Essa violência não nasce do nada vem alimentada por desigualdades históricas e por uma política de segurança que, em vez de investir em inteligência, integração de dados, prevenção estruturada e cuidado com a juventude, preferiu reforçar o braço armado do Estado. E aí a conta chega: mais mortes, mais medo, mais insegurança

Leia também: Dobra o número de mortes por ações policiais em SP; negros são maiores vítimas

Muitas pessoas podem se perguntar o porque nenhuma cidade do Sudeste, ou grandes métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro não aparecem no ranking, já que historicamente o crime organizado se concentrou inicialmente nesses municípios. João Saraiva explica essa mudança:

“Nos últimos anos, o que se percebe é que a geopolítica do crime organizado no território brasileiro sofreu alterações. Antes, os grandes comandos estavam mais restritos no eixo Sudeste, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, sendo este ultimo muito marcada por uma ocupação territorial massiva. Hoje, com o fortalecimento das redes de tráfico internacional e o enfraquecimento das estruturas estatais em diversas regiões, o Nordeste virou território estratégico para o crime — seja por estar próximo de rotas portuárias e fronteiras, seja pela fragilidade da presença do Estado em muitas cidades médias”

A cor das vítimas

O anuário traz outro fator importante sobre os dados da violência no Nordeste, fazendo um recorte racial, o perfil das vítimas é homens negros jovens de idade entre 18 e 24 anos, que são moradores de regiões periféricas. 73% desses jovens morreram por armas de fogo.

João explica que os dados revelam um racismo estrutural. “Isso não é coincidência, é um retrato escancarado do racismo estrutural brasileiro. A juventude negra masculina é a mais impactada pela violência porque, desde cedo, é também a mais desprotegida. Esses jovens crescem em territórios periféricos que enfrentam abandono institucional, e ao mesmo tempo são os mais vigiados, abordados e suspeitos”, pontua o especialista.

O Estado, que deveria garantir direitos, muitas vezes chega apenas como ameaça. Quem morre pela violência no Brasil tem raça, tem gênero e tem território definido. É um futuro pautado por características sociodemográficas. O racismo estrutura o que é considerado vida com valor no Brasil“, acrescenta.

O sociólogo também alerta para a necessidade de encarar a morte de jovens negros como prioridade política.

“Se a cada 100 pessoas assassinadas, 79 são negras, isso precisa ser encarado como prioridade política. E isso não se resolve com mais polícia nas ruas. Se resolve com mais políticas públicas estruturais e transversais. É pensar a prevenção vinculada à educação. O que o anuário traz é que é mais do que urgente disputar o futuro desses jovens com políticas que digam: vocês importam. E não que nascer negro e pobre é, automaticamente, uma sentença de possibilidade de morte na juventude“, finaliza João Saraiva.

Layla Silva

Layla Silva

Layla Silva é jornalista e mineira que vive no Rio de Janeiro. Experiência como podcaster, produtora de conteúdo e redação. Acredita no papel fundamental da mídia na desconstrução de estereótipos estruturais.

Deixe uma resposta

scroll to top