Dia Internacional da Mulher: Tia Surica, intérprete da Portela em 1966, lembra que foi “uma das que conseguiu quebrar o preconceito”

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Dia 8 de março é comemorado o Dia Internacional da Mulher, por isto o Notícia Preta decidiu entender mais a história das mulheres no samba. A grande da Baluarte da Portela, Tia Surica, que foi uma das pioneiras a ser voz oficial de uma escola de samba, contou os desafios de ser mulher no samba, Wic Tavares também falou sobre sua experiência como interprete.

As mulheres estão presentes nos marcos fundamentais do samba. Tia Ciata é considerada a fundadora, a mulher que gestou o movimento, Tia Surica, em 1966, foi intérprete oficial da Portela, Elza Soares cantou na mocidade na década de 70, no álbum Raça Brasileira (1986) tivemos a presença de duas mulheres Jovelina Pérola Negra e Elaine Machado entre 5 cantores.

Tia Surica e sua medalha da Ordem do Mérito Cultural – Fabio Motta / Prefeitura do Rio

Tia Surica, em entrevista exclusiva ao NP, contou como foi fazer parte do samba naquela época que, segundo ela, havia uma forte barreira do preconceito, mas mesmo assim conseguiu ser umas das pioneiras a puxar uma escola de samba na avenida.

“Naquela época fui uma das que consegui quebrar barreira, pois o samba naquela época era muito discriminado, mas conseguimos superar isso”, disse Surica.

Assim como Tia Surica e Elza Soares, Wictoria Tavares, mais conhecida com Wic, é cantora e foi interprete oficial da Unidos da TIjuca em 2022 e 2023, ela que também já passou pelo funk, já tocou nas rádios do Brasil, entende que as mulheres enfrentam problemas no samba.

“Eu acho que o machismo ainda é muito presente nos carros de som de escola de samba, os homens ainda veem as mulheres num lugar negativo, mas eu pergunto a galera que diz que as mulheres não sustentam cantar, ‘porque nos contratam pra ser voz de apoio?’. Não faz sentido, se não servimos para interprete oficial, para apoio muito menos, porque o apoio não pode parar de cantar, então se estamos ali e sustentamos, também podemos ocupar o lugar de protagonismo” destacou.

De acordo com Wic, o mercado é muito difícil para as mulheres no samba, e ela diz que quando algo dá errado, a primeira a ser demitida é a mulher, mesmo que ela não tenha nada a ver com o problema em questão, mas essa demissão serve como prestação de contas.

“As vezes a mulher sai, a escola continua indo mal e percebemos que o problema não era elas… É muito triste ver isso acontecendo porque o samba no Rio de Janeiro começa com uma mulher que é tia Ciata” afirma.

Wic Tavares e seu pai Wantuir de Oliveira cantando na Unidos da Tijuca – Foto: retirada do Instagram.

A origem histórica

Doutora em História Política pela UERJ com a tese Mulheres Negras no Pós Abolição, Angélica Ferrarez, entende que o universo do samba reflete as relações sociais, “logo dizer que é um espaço machista, eu concordo totalmente, porque é o reflexo social, de uma sociedade machista de bases patriarcais. Mas não gosto de alimentar a ideia de rivalidades entre homens e mulheres nesse espaço”, disse.

Graduando em história Marco Aurélio, que é colunista na Revista Opera sobre a história social da música afro diaspórica, acredita que além da barreira do racismo, existia a barreira do sexismo, entende que isso deriva de uma herança da escravidão que atravessou o Brasil. “As mulheres eram amas de leite, cozinheiras. Os homens faziam o trabalho braçal, pesado”, lembrou ele.

Marco lembra também que além do samba, na formação do candomblé no Brasil, o ato de tocar os atabaques nas casas de santo se tornou algo exclusivo dos homens, “coisa que, na África, e nas religiões tradicionais que inspiraram o candomblé, não existe”, disse. Ele lembra ainda que às mulheres, dentre outras importantes atribuições, a função de cozinhar exclusivamente.

Para Angelica, quando se reflete o samba nas origens, ele é fruto de movimentos culturais e políticos que estão lá no pós abolição e que reflete a luta de uma comunidade negra, formada por homens e mulheres. “O desafio que se coloca hoje é como vamos recalcular a rota para colocar essas mulheres na cena, atentar para o protagonismo delas, lembrando que ainda estamos imersos na mesma sociedade de base patriarcal, machista e sexista de outrora”, colocou Angelica.

Marco entende que o machismo presente na sociedade colonial brasileira acabou penetrando nos círculos de negros escravizados e alforriados, e se fez presente desde os primórdios do samba. Ele explica que, na primeira geração do samba, que frequentava a casa de Tia Ciata, os nomes lembrados são sempre os de João da Baiana, Donga e Pixinguinha. “Pelo Telefone, samba criado de forma comunitária, numas dessas reuniões na casa de Ciata, acabou sendo dado como composição de Donga, exclusivamente”, lembrou.

Marco alerta que, na segunda geração do samba, a mulher era o tema central das canções daqueles compositores que habitavam o Estácio de Sá, a Cidade Nova e a Zona do Mangue. Tratadas com desleixo, colocadas quase como um objeto, as letras refletiam a realidade daquela região, onde a prostituição, mal vista e execrada, era um dos motores da economia da região.

“Tudo isso, aliado à divisão sexual do trabalho e do trabalho reprodutivo, influenciou na forma como o samba se fez, predominantemente masculino. Para a mulher, o espaço no samba sempre foi, em certa maneira, de segundo plano: cozinhar, sambar, apoiar seus maridos em suas composições e noitadas. A organização era delas, o ritmo, as músicas e as rodas eram dos homens”, explicou ele.

Em 2023, a rainha do carnaval de 2022, Mariana Ribeiro, mais conhecida como Mari Mola, concedeu exclusiva ao NP e falou sobre o samba ser gerador de empregos e também sobre como a mulher era vista no samba:

“As pessoas ficam sempre falando que carnaval é festa. É sim uma festa e o maior espetáculo a céu aberto do mundo, mas também é um evento que movimenta sambistas e trabalhadores durante todo o ano. Nós trabalhamos com samba, não é só rebolar a bunda, devemos ser reconhecidos como bailarinos“, disse.

A mulher, o samba e a política

Tia Surica, além de ser baluarte da Portela, figura importante do samba, aos 83 anos ainda é ativa politicamente. A sambista, em 2022, recebeu uma medalha da Ordem do Mérito Cultural e em 2023 a Medalha de Mérito Pedro Ernesto. Surica esteve de frente na campanha de vacinação contra a Covid, por exemplo, ela acredita que o sambista deve participar ativamente da política, defende a democracia e o direito de escolha.

Para ela, “todo cidadão tem seus candidatos, não posso responder por ninguém, mas que tem tem, cada um tem sua opinião”, disse falando se o sambista deve ou não ser ativo politicamente.

Angélica acredita que o samba por si só já é uma manifestação política pulsante. Para ela , é no universo do samba, nos espaços das escolas de samba, das rodas de samba, do carnaval, que mulheres também estão reivindicando seus outros espaços sociais. Independente de estar ou não engajada na política partidária.

A doutora entende que a política partidária é um dos caminhos, mas para ela, o caminho mais amplo talvez seja os ativismos, a organização. Não só para as mulheres, mas também os homens. Se engajar contra as violências de gênero, contra as bases opressoras do patriarcado, contra os machismos, ela acredita que esta é uma luta de todos:

“Enquanto a gente tiver achando que só mulheres devem ser anti machista, antissexista, só pra dar um exemplo, gente não vai alcançar outros lugares de poder. A gente precisa de homens antissexistas, a gente precisa de homens anti machistas, a gente precisa de homens feministas. Homens que não sejam apenas consumidores da música de Leci Brandão ou Beth Carvalho, mas que aprendam nas músicas, nas falas e nas trajetórias dessas e outras, uma nova maneira de ser estar no mundo”, explicou ela.

Ludmilla e a nova geração

Perguntada sobre o sucesso que a cantora Ludmilla faz com o álbum Numanice, Wic Tavares diz que, assim como Lud, passou pelo funk, acredita que a cantora ajuda a abrir portas para as mulheres, mas entende que o mercado precisa ser melhor.

“O movimento que a Ludmilla faz abriu muitas portas para as mulheres no mercado e na sociedade, apesar das mulheres estarem vivendo bons momentos na música, talvez ainda falte o mercado olhar de outra maneira, a Ludmilla consegue nos encorajar, nos dá força, mas falta o mercado olhar com carinho”, colocou.

A cantora Ludmilla, que é de uma geração mais jovem, tem conseguido trazer de volta as mulheres negras o protagonismo no samba no cenário internacional. Neste ano, a cantora vendeu 4 mil ingressos para um cruzeiro marítimo, o “Navio Ludmilla”, além de ganhar um Grammy Latino em 2022 com o Numanice, álbum em que a artista que veio do funk canta samba.

Marco Aurélio destaca a posição de Ludmilla, mas relembra que a maioria das mulheres envolvidas com o samba, ainda se encontram numa posição de inferioridade, mesmo estando diariamente nos barracões das escolas, nas rodas de samba, pois são “vitimas da divisão sexual do trabalho”, colocou.

Thayan Mina

Thayan Mina

Thayan Mina, graduando em jornalismo pela UERJ, é músico e sambista.

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