Em um Brasil que se prepara para sediar a COP30, as vozes dos territórios historicamente marginalizados tornam-se cada vez mais essenciais no debate sobre crise climática e justiça ambiental. Em entrevista exclusiva ao Notícia Preta, Gaio Jorge, liderança climática e jovem negociador pelo clima com trabalho voltado para territórios periféricos, lança luz sobre os desafios, estratégias e soluções que emergem das periferias, colocando-as como protagonistas de uma transformação urgente e necessária.
Para Gaio, a forma como a questão do meio ambiente nas favelas foi tratada nas grandes mídias, impõe uma reconfiguração urgente na forma como se comunica e atua em temas ambientais nesses territórios. “Parecia que falar sobre meio ambiente não era algo para a população preta, quando, na verdade, somos nós, junto aos povos indígenas, os maiores protagonistas da preservação e da resistência ambiental”, conta Gaio.

Engenheiro de alimentos pelo CEFET e técnico em meio ambiente pelo SENAI-RJ, Gaio também se mobiliza sobre as pautas climáticas em territórios de grande impacto. Mas ele aponta que a falta de relação entre as regiões do periféricas com o debate sobre o meio ambiente, foi construído.
“Sinto que, historicamente, os temas relacionados ao meio ambiente, ao clima e às questões socioambientais foram distanciados das favelas e periferias”, afirma Gaio. “Isso se deu, em grande parte, com a narrativa dominante que revelava imagens estereotipadas, como pessoas abraçando árvores que pouco dialogavam com a realidade vivida nesses territórios”.
Essa desconexão entre discurso ambiental e realidade periférica, segundo ele, perpetua uma invisibilização que desconsidera a precariedade urbana e a vulnerabilidade climática. Os números confirmam essa desigualdade: dados da Casa Fluminense apontam que 1 em cada 5 domicílios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro está em área de alto risco de inundações, e 1 em cada 100 em áreas de risco de deslizamento. Já o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres da Defesa Civil registrou entre 2020 e 2023 140 mortes, 690 feridos e mais de 3 milhões de pessoas afetadas por eventos extremos no estado, com prejuízos próximos a R$ 935 milhões.
Ele destaca que a intensificação dos eventos extremos vem contribuindo para uma nova percepção coletiva. O aumento de enchentes, deslizamentos e ondas de calor tem forçado uma reaproximação do tema ambiental com a vida real da favela.
“Como as favelas e periferias não foram pensadas nem construídas para lidar com esse tipo de impacto, lideranças locais passaram a ter um papel central”, explica. “Essas lideranças constroem soluções, adaptam linguagens e promovem o acesso ao debate climático antes restrito a espaços elitizados”, explica.
Educação popular e protagonismo periférico
A mobilização das favelas tem se apoiado fortemente na educação ambiental como ferramenta de transformação. Iniciativas locais promovem mutirões de reflorestamento, oficinas de reciclagem, ações de segurança alimentar, comunicação comunitária e intervenções culturais que espalham informação de forma acessível.
“Não se trata apenas de levar informação, mas de espalhar conhecimento de forma acessível, conectando-o com a cultura local e com metodologias populares que façam sentido para quem está ali”, afirma Gaio.

Mas ele também aponta para um obstáculo ainda presente: o não reconhecimento institucional das práticas sustentáveis desenvolvidas pelas comunidades há décadas.
“As favelas e periferias são territórios de reinvenção: reutilizamos, compartilhamos, cultivamos, protegemos a água não por modismo, mas por necessidade. O problema é que essas práticas nem sempre são valorizadas porque não vêm com o selo das instituições ou da academia”.
A ausência de políticas públicas que reconheçam essa inteligência coletiva reforça a exclusão estrutural. Gaio destaca a importância de transversalizar a justiça climática. Ou seja, integrá-la a todas as áreas da vida pública: da saúde ao saneamento, da habitação à mobilidade.
“É urgente reconhecer a importância de transversalizar a justiça climática em todas as esferas de tomada de decisão, como estratégia fundamental de enfrentamento ao racismo ambiental”.
Cultura como ponte entre dor e transformação
Gaio reforça que o caminho da “conscientização” precisa ser substituído por um processo de sensibilização, mais alinhado com o cotidiano dos moradores.
“É importante dizer: a gente não conscientiza, a gente sensibiliza. A consciência se constrói com o tempo, por meio de práticas contínuas de educação ambiental, ações de base e iniciativas culturais”, conta.
Um exemplo poderoso dessa abordagem foi o álbum “Depois que a Água Baixou”, criado pelo Coletivo Criação com o produtor Babidi, após as enchentes de 2024 que atingiram regiões como Parque Columbia, Honório Gurgel e Guadalupe. A obra musical transformou vivências em denúncia, arte e mobilização.
“Foi a arte que conseguiu traduzir nossa dor, nossa força e nossa resistência. O álbum popularizou o debate sobre justiça climática, conectando quem vive o problema diretamente com quem ainda não havia percebido sua gravidade”.
A cultura e a arte, portanto, cumprem um papel essencial: ampliam a percepção, fortalecem o pertencimento e criam pontes entre o individual e o coletivo. Isso se reflete na atuação de coletivos que tecem uma resposta territorializada e contínua às emergências climáticas.
“No fim das contas, o que fazemos é ajudar a nomear aquilo que já está presente nas vivências das pessoas: o racismo ambiental. Dar nome ao problema é o primeiro passo para enfrentá-lo de forma coletiva, territorializada e com justiça climática”, diz o técnico em meio ambiente.
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A urgência de uma adaptação climática antirracista
Com a proximidade da COP30, o Brasil será cobrado internacionalmente por suas políticas ambientais. Gaio aponta que qualquer avanço real precisa estar ancorado em uma adaptação climática antirracista, ou seja, que reconheça a interseção entre a crise do clima e as desigualdades sociais, raciais e territoriais.
“Essa abordagem propõe um conjunto de políticas públicas estruturantes, interseccionais e intersetoriais, com foco no bem viver, na proteção de vidas historicamente vulnerabilizadas e na preservação dos biomas”, aponta.
Para ele, isso passa pela inclusão dos saberes e práticas das comunidades populares em todas as etapas: do planejamento ao monitoramento.
“A efetivação de políticas de adaptação antirracista é fundamental para enfrentar os impactos desproporcionais da crise climática e dos eventos extremos, como enchentes, secas, deslizamentos e ondas de calor”.
Mais do que uma pauta ambiental, trata-se de garantir direitos humanos, promover reparação histórica e construir uma nova base para o futuro das cidades. E esse futuro, afirma Gaio, só será possível com as favelas e periferias no centro da transformação.