O Brasil vive, há vários anos, um processo de ocupação de espaços, em que o negro vem sendo, desde sempre, negligenciado e marginalizado. No Poder Judiciário, a situação é ainda mais segregadora, com um mínimo de profissionais negros. Para se ter uma noção da disparidade entre negros e brancos no ambiente jurídico, o Ministério Público possui em seus quadros 1200 procuradores da república, no entanto, apenas 22 são autodeclarados negros, o que corresponde a 1,8% de todo o quadro.
A história de Anderson Rocha Paiva, procurador empossado em janeiro deste ano, como ele coloca, é uma vitória para a comunidade negra. “Eu tinha o sonho de ser médico, cheguei a fazer vestibular para Medicina e fiquei como excedente na UFES, só que na Medicina ninguém desiste. Voltei pra minha cidade e trabalhava em turnos. Ficava o expediente todo na boca de um forno daqueles que fazem a embalagem dos fardos de leite. Até que me mandaram embora e aí alguém me falou assim: ‘por que você não faz concursos? Você estudou pra caramba!’ Daí em seguida saiu esse concurso dos Correios, eu fiz e passei”, refletiu.
O percentual pífio de negros no poder judiciário, segundo Anderson, faz com que a comunidade não tenha interesse em mudar esse panorama, mas a ideia é justamente o contrário. “A ideia é mostrar um caminho oposto a essa situação que se instalou, uma possibilidade diferente de romper os paradigmas, as situações já consolidadas que existem e que influenciam nós negros de maneira negativa”, alertou.
Estudos em segundo plano
Durante muito tempo, Rocha se caracterizava como “concurseiro”, como são chamadas as pessoas que se dedicam aos concursos e que diante de muitas dificuldades, até a faculdade ficou em segundo plano. “Eu sou de uma cidade onde as pessoas vão muito para os Estados Unidos (Governador Valadares – MG) e meu pai foi para lá. E ele foi uma pessoa que não se divorciou só da minha mãe, mas da família toda. Foi aí que as coisas começaram a ficar difíceis, minha mãe era costureira, ‘ficamos vendidos’ e passamos a viver com a ajuda dos meus tios – irmãos da minha mãe. A faculdade passou a ser algo secundário para mim”, revelou o procurador e ressaltou ainda. “Um dos meus tios conhecia a dona de uma Faculdade de Direito em Governador Valadares, e ele comentou com ela que tinha um sobrinho que gostava de estudar. Ela sugeriu que eu fizesse o vestibular e que, se fosse bem, teria desconto. Eu passei em 2° lugar no vestibular e estudei de graça. Me lembro que, na ocasião da matrícula, eu não tinha dinheiro e tive que pegar emprestado”.
Cotas étnicas
O concurso para procurador da República contemplava 20% das vagas para pessoas autodeclaradas negras ou pardas, mas, até então, segundo Rocha, não tinha concorrido com cotas em concursos anteriores. “Foi a minha primeira vez que eu me inscrevi pelas cotas. Não era porque eu não queria me inscrever como cotista, é que eu ainda não havia me inscrito em nenhum concurso que contemplasse a previsão de cotas para negros no edital. Eu me inscrevi, mas não botei fé, dos 14.500 inscritos, somente 95 pessoas passaram para a segunda fase. O resultado sai por Estado, e no meu (Minas Gerais), 5 pessoas passaram – eu era um deles, e o único negro. A previsão de cotas me ajudou no final porque eu passei em 23° lugar e fui chamado antes, em 5° lugar. […]. É como se Deus me desse mais do que aquilo que eu passei a vida buscando”, comemorou.
À luz do direito, as cotas étnicas são legalizadas e consolidadas, inclusive submetidas ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, Anderson ressalta que a fiscalização é de grande importância para que o princípio da isonomia seja mantido. “Temos casos em que as cotas já foram burladas, mas isso não é um problema da lei e sim da aplicação da lei, das pessoas fraudando o sistema com a utilização até criminosa da lei, então me parece que o problema não é a lei e sim o homem tentando se valer dela para praticar condutas contrárias ao ordenamento jurídico”, finalizou.
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