Matéria produzida pelos repórteres Eduardo Machado e Rosana Silva do “Entre Becos”
O interesse em promover o conhecimento sobre as culturas afro-brasileiras mobilizou Eurides Nascimento, 41 anos, intérprete e tradutora da Libras. “Percebi que as pessoas surdas eram tolhidas dessas informações”. A moradora do bairro do Bom Juá, em Salvador, acredita que os assuntos sobre as culturas negras precisam alcançar esse grupo social.
A presença do candomblé na vida de Eurides influenciou sua carreira e o interesse de explorar o universo das religiões de matriz africana por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
A Libras é o idioma das pessoas surdas. Ela é produzida pelas mãos, expressões corporais e faciais, mas é entendido pela visão. “É importante saber que o termo não é linguagem, mas é a língua de um povo, com gramática e um código linguístico que tem uma regra”, ressalta.
No período da pandemia, Eurides, que também é consultora em acessibilidade e fundadora do Libras Mais Afrodiversa, buscou ampliar o conhecimento voltado para as religiões de matriz africana no projeto de extensão Construindo Saber Èdé Lamí, na Universidade Estadual do Sudoeste Baiano (Uesb).
“Na última hora, entrei para o grupo de pesquisa sobre ancestralidade com tradução do yorubá para o português e do português para a língua brasileira de sinais. Queria propiciar para a comunidade surda o legado de minha avó, os assuntos que são tão negados a essas comunidades”, enfatiza.
A consultora recebeu o nome da avó, Eurides Silva de Jesus, conhecida como Mãe Perina, uma importante yalorixá (mãe de santo) da cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano. Ela também integrava a Irmandade da Boa Morte, uma sociedade, inicialmente, formada por mulheres africanas e abolicionistas com mais de 200 anos de existência.
“Não tenho como lhe dizer que não sou uma mulher de axé, nasci dentro de um terreiro. Hoje sou grata por isso, vivo mais próxima à ancestralidade”, afirma.
E destaca a importância da avó em sua escolha profissional. “Encaro o trabalho com a Libras como um legado da minha avó. Herdei a questão da hospitalidade, do carinho, da empatia, do respeito à diversidade e do respeito ao outro da minha avó”, explica.
Com o curso no projeto Édé Lamí, Eurides desenvolveu novas técnicas. “Utilizo os conhecimentos adquiridos com o professor Wermerson Silva e as vivências para ressaltar a cultura afro-brasileira de forma não ‘contaminada’ para a comunidade surda”.
Eurides ainda ressalta a importância do cuidado na tradução e interpretação deLibras para essas culturas, a fim de que garantir o respeito.
“Se eu tenho uma concepção religiosa e vou [traduzir] para uma outra religião, levo toda a minha visão de mundo. Nós não encontramos pessoas surdas, negras, periféricas em terreiros que fazem essas traduções fidedignas, com conceito, com etimologia, a respeito das religiões de matriz africanas”, pontua.
Em 2015, foi promulgado o Estatuto da Pessoa com Deficiência e da Igualdade e da Não Discriminação. “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”, destaca a lei n°13.146, cujo art. 4°.
A consultora comemora a possibilidade de estar nos espaços para divulgar esses saberes e contribuir para o acesso das pessoas surdas. “O último trabalho que realizei foi no Festival Fala. Eu me senti realizada e com a sensação de missão cumprida. Pude traduzir artistas como Sabotagem, Pradarrum, Amanda Rosa, Diego, bem como traduzir debates “afrofuturistas” para a comunidade surda”, detalha.
Em 2020, Eurides participou do Festival Latinidades e apresentou a Oficina Bailando com as Mãos, em que interpretou canções de alguns artistas. Dentre as canções, ela trabalhou com um trecho do “Ponto de Nanã”, da intérprete Mariene de Castro, que versa sobre a orixá feminina.
Em relação a criação dos sinais, a consultora explica que eles nascem a partir da vivência da pessoa surda e das suas experiências visuais.
“Para além da escolha da configuração de mão e outros quatro parâmetros da Libras, é necessário que o sinal seja carregado de sentido como na palavra Oxumarê”.
Na canção, o sinal da Libras usado por Eurides para representar o orixá é o arco-íris em junção com o sinal da cobra, forma pela qual Oxumarê é representado no candomblé.
Libras na religião
Para Elinilson Soares, 39 anos, artista surdo, professor de libras e liderança da comunidade surda no campo da cultura e da arte, ainda são poucos os intérpretes que atuam na difusão das culturas afro-brasileiras.
“Percebo que muitos intérpretes estão na área da política, nas palestras, interpretando, traduzindo e adaptando, porém no Brasil temos muitas variações linguísticas na Libras. Do mesmo modo, temos muitas religiões distintas, o que requer ao profissional estudos específicos. Embora pouco, já temos alguns intérpretes que atuam nos terreiros de candomblé”, explica.
Mão erguida abaixo da cintura com três toques simbólicos na parte superior do Ori (cabeça) é o sinal termo em Libras à palavra candomblé. E é como ensina o professor e doutorando em Memória e Linguagem Wermerson Silva, 35 anos, por meio das redes sociais do Axé Libras, canal do Youtube e Instagram @AxéLibras.
Aos 7 anos, Wermerson Silva já sabia Libras. Ele aprendeu com a mãe professora de educação especial. Hoje, intérprete, tradutor e professor da Língua, da Uesb, ele ajudou a criar e coordena o projeto de pesquisa e extensão Construindo o Saber Édé Lamí.
Criado em 2013, Édé Lamí são termos na língua yorubá que significam “Língua de Sinais”. A iniciativa foi pensada com as comunidades surdas, adeptos das religiões de matriz africana e estudantes universitários para propor sinais termos inexistentes no campo religioso.
Sacerdote do Ilè Àsé Òsún Kárè, o babalorixá (pai de santo) pondera que o sacerdócio veio não só para não só dialogar com os ouvintes, mas como também filhos e filhas surdas. Ele recorda os momentos mágicos que o envolveu ao candomblé.
Em 2011, foi convidado para fazer a interpretação da 4° Conferência Estadual de Cultura Afro-Brasileira, sediada na cidade de Vitória da Conquista, Bahia. Lá, se deparou com vários termos da língua das religiões de matriz africana que não tinham sinais termos apropriados para fazer a interpretação naquele momento.
“Fazendo entrelaçamento das minhas experiências pessoais com as práticas tradutórias e interpretativas sobre a cultura afro-brasileira e africana, parti desse processo de intermediação e percebi que havia uma necessidade, uma falta da cultura afro-brasileira e africana para Libras”, explica.
Wermerson explica como foi o processo de criação de alguns sinais termos.
“A criação dos sinais termos voltados para a língua yorubá, inicialmente foi com os sinais referentes aos deuses mitológicos africanos, os orixás, e alguns termos que contribuem para uma melhor compreensão acerca da religiosidade de matriz africana: terra, céu, cabeça, awô (o recém-iniciado no culto), bem como discussões relacionados às relações étnico-raciais na educação básica para um contexto plural”.
Elinilson, que reside no bairro de Itapuã, aponta que no Brasil os ouvintes têm maior experiência e autonomia sobre as religiões enquanto pessoas surdas não têm acesso igualitário.
“Se eu, pessoa surda, entrar em alguns espaços de religião de matriz africana, por vezes, faltarão informações e instruções específicas, o que faz com que ajam barreiras no que diz respeito à acessibilidade. São raros os intérpretes nesses lugares”.
O professor de Libras observa que para as religiões cristãs as barreiras são menores para a comunicação.
“Nas religiões como a católica, testemunha de Jeová, batista, temos um número grande de intérpretes que atuam. Os surdos têm acesso a esses conteúdos. Ao participar do candomblé, com acessibilidade, a pessoa surda irá perceber muitos estereótipos e preconceitos que foram lançados contra essa religião e conhecerão os sinais termos apropriados para utilizar. Tudo isso através de algo muito importante, que é a acessibilidade sobre a nossa cultura afro-brasileira”.
No terreiro, Wemerson sempre procura exemplificar como trabalha a inclusão e a acessibilidade para seus filhos e filhas. “As surdas e os surdos nos espaços de candomblé, por vezes, não criam vínculos se não houver uma comunicação acessível. Eles até conseguem frequentar, se há aprendizagem de cantigas e de afetos verdadeiros”, diz.
O babalorixá ainda exemplifica a situação ao comentar que já recebeu pessoas que não têm informação sobre o orixá, como também aquelas que contribuem com a mão de obra do terreiro frequentado, mas desconhece assuntos relacionados à fé e aos conhecimentos.
Seguidor do Édé Lamí nas redes sociais, Elinilson considera o projeto uma importante referência para as pessoas surdas e para promoção da acessibilidade.
“O projeto conta com vídeos no Youtube, também palestras virtuais, interações e estudos que contribuem para disseminação do conhecimento, por exemplo, já sabemos identificar sinais termos como o de Oxum, Oxóssi e diversos outros”.
E destaca: “O mais importante disso tudo são as informações sobre a cultura afro-brasileira chegando para o povo surdo. Nesse sentido, o projeto é uma referência de pesquisa para nós da comunidade surda”.