Minha avó tinha o hábito de me levar pra trabalhar com ela, precisamente nos locais onde havia crianças da minha idade. Doméstica, minha avó era diarista. Ficava o dia inteiro diante de um ferro de passar roupas. Me lembro de cada detalhe, especialmente das recomendações que me eram feitas. A lista era tão grande que começava ao entrar no primeiro ônibus, ainda na escuridão da madrugada, e permanecia horas depois, já na casa da “madame”. Não falar muito ou alto demais. Não ir aos outros cômodos da casa. Não comer o que tinha na geladeira. Aliás, nunca abrir a geladeira. Não aceitar o que a patroa oferecia por educação. E, principalmente, nunca se comportar como o filho da patroa. Ele certamente falaria alto, subiria no sofá, comeria no tapete e me chamaria pra correr dentro de casa. Este comportamento era inaceitável para a neta da empregada. Me lembro de seguir cada regra. Me lembro também dos comentários da “madame”: “essa menina é um bicho do mato”. “Você estuda? Qual série?”. De fato, a desconfiança intelectual procedia. Ela tinha um filho desenvolto, pronto pra comentar cada diálogo, cheio de opiniões… E eu, constantemente sob a censura necessária para sobrevivência. Minha avó acompanhava tudo em silêncio e com um sorriso discreto. Acho que minha avó não tinha grandes planos intelectuais pra mim. Na verdade, acho que ela me levava ao trabalho para poder passar roupas em paz e ficar mais livre das interpelações do filho da patroa.
O que esta memória tem a ver com a resposta da Caixa Econômica Federal no caso mais recente em que o empresário preto Crispim Terral, 34, foi agredido e arrastado para fora da agência pela polícia ao exigir que fosse atendido? Minha avó teria uma explicação simples e que, ao mesmo tempo, destrói a farsa de um Estado onde cidadãos têm seus direitos igualmente respeitados.
Vejamos objetivamente a situação. Um cliente tem o seu direito violado – pode acontecer com qualquer um! Ele exige o cumprimento das normas da empresa e não tem o desejo atendido – pode acontecer com qualquer um! Ele se recusa a ser tratado como sub-cidadão – pode acontecer com qualquer um! Então ele se sente destratado pela instituição na pessoa de seus representantes, é agredido pelos seguranças da empresa, é retirado pela polícia como um marginal e um consenso costumeiro de quem tem a memória escravagista se forma em torno do caso: o cidadão se excedeu e cada um cumpriu seu papel.
Cara gente branca! Pode acontecer com qualquer um, MAS NÃO ACONTECE! Assim funciona nosso pacto racista. Assim tem funcionado. A imagem do preto cordial que aceita ser “quase cidadão” está no imaginário das instituições. É um contrato que funciona perfeitamente: a empresa solta uma nota dizendo que “respeita a diversidade”, a polícia diz que fez seu trabalho, a sociedade entende que o “preto teve uma reação exacerbada” dentro do imaginário do “preto perigoso”, e a justificativa é: “pode acontecer com qualquer um”.
Cara gente branca! Não vai acontecer com você! Não é coincidência que pretos andem tomando mata-leão ou morram sufocados em supermercados. Que advogadas pretas saiam algemadas e arrastadas nos fóruns durante exercício da profissão. Bem como consumidores sejam seguidos em estabelecimentos comerciais. Ter seus direitos respeitados em um Estado racista também é um privilégio. Minha avó sabia.