“O que sustentava o Império era o escravismo”, lembra historiador sobre as primeiras leis abolicionistas brasileiras

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Dia 28 de setembro é a data de promulgação de duas leis que são marcos para a escravidão que perdurou no Brasil por mais de 300 anos. São elas a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885).

Quando se fala em abolicionismo, geralmente se pensa no movimento de intelectuais e figuras importantes do cenário político brasileiro, como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. É preciso lembrar, no entanto, que negros foram protagonistas na luta pela abolição da escravidão.

Além de nomes mais conhecidos, como André Rebouças, José do Patrocínio e Luís Gama, africanos e afrodescendentes já pressionavam informalmente o sistema escravista brasileiro tanto através de resistência individual, quanto de movimentos coletivos, como o movimento dos caifazes, que organizaram uma séries de fugas de fazendas e nas cidades de São Paulo.

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Raphael Amaral, que é professor de história, afirma que a população escravizada criou os principais fatos que fortificaram o abolicionismo.

“As propostas dos grandes nomes do movimento [abolicionista] eram impulsionadas a partir das ações que as comunidades negras do Brasil inteiro estavam realizando. O movimento abolicionista, por mais importante que ele tenha sido, vinha acompanhando e tentando, minimamente, dar visibilidade às ações que a população negra realizava, principalmente fugas, revoltas , quilombagem como um todo, a compra de alforrias(…) É inegável que o que realmente pressionou para o fim da escravidão foram as ações da própria população escravizada naquele momento.

Dia 28 de setembro
Menina negra em busca de livros. Fonte: Unplash.

Há uma ampliação muito grande, principalmente entre os anos 60 e 70 do século XIX, de relatos de revoltas de escravizados, como assassinatos de famílias inteiras de donos de pessoas seguidos por fugas. Essas notícias corriam pelo país e aumentavam a força do movimento para acabar com a escravidão.”

Assim, através de mobilizações internas e pressões externas, o Brasil teve que ceder em prol da libertação dos escravizados. No entanto, essa mudança ocorreu de modo gradual, visto que a resistência das elites, sobretudo cafeeiras, era muito grande. Sobre isso, Amaral acrescenta que “o maior problema, na verdade, era a fortíssima resistência no Império, incluindo a família real, que não se coloca abertamente como defensora da escravidão, mas pouco se movimentava para acabar com ela. O que sustentava o Império era o escravismo. Não à toa, a monarquia chega ao fim um ano após a abolição”. A escravidão havia se tornado não apenas a base da economia brasileira, mas ela estava enraizada também na mentalidade e nas relações sociais do Império

Lei do Ventre Livre (1871)

A Lei do Ventre Livre, como seu apelido já indica, determinava que seriam considerados livres aqueles que nascessem de ventre de uma pessoa escravizada. A essa altura, leis como essa já haviam sido aprovadas em outros países da América Latina, como Chile, Venezuela, Equador, Peru e Cuba.

Vale lembrar que, ao longo da História, não é incomum observar que algumas sociedades consideravam (ou consideram) uma condição hereditária especificamente de linhagem materna ou paterna. Na República Romana, por exemplo, a condição de plebeu era transmitida do pai para sua prole. Já na comunidade judaica, até hoje se considera a Halachá, conjunto de normas e leis advindas da Torá, que estabelece que são judeus aqueles nascidos de mãe judia. Durante a escravatura no Brasil, por sua vez, a condição de escravizado era transmitida por linhagem materna.

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Escravizada e seu bebê durante o Segundo Reinado – Fonte: Biblioteca Nacional, In: Arquivo Senado

Além daquilo que evidencia em sua titulação, a lei de 1871 também reconheceu o direito dos cativos ao pecúlio, isto é, poderiam juntar dinheiro legalmente de modo a comprar sua alforria. Uma vez oferecida a quantia, o senhor deveria libertar a pessoa. Da mesma forma, a Lei do Ventre Livre estabeleceu a criação do Fundo de Emancipação, que, sustentado através da arrecadação de impostos, multas e doações, seria voltado para a libertação anual de escravizados em cada província do Império. Por fim, as pessoas que eram propriedade da Coroa em razão da morte de seus senhores também foram libertas.

Apesar de poder parecer, a princípio, promissora, a lei apresentou-se bastante limitada no sentido de combater a escravidão e demonstrou-se alinhada aos interesses das elites escravistas. A historiadora Lorena Féres da Silva Telles, por exemplo, afirma que os nascidos após setembro daquele ano (conhecidos como “ingênuos”) não eram tidos imediatamente como livres. Na verdade, eles ficavam com a mãe pelo menos até atingirem 8 anos de idade, e corriam o risco de servir compulsoriamente ao senhor de escravos até seus 21 anos ou ser entregues ainda criança ao Estado em troca de indenização ao proprietário da progenitora.

“Houve uma pressão dos fazendeiros no Parlamento, e a lei que vence é aquela que mantém o interesse senhorial sobre os chamados ‘ingênuos’, que seriam os filhos das mulheres escravizadas. Eles seriam obrigados a trabalhar para os senhores das mães até os 21 anos de idade. Havia a possibilidade de os senhores entregarem as crianças aos 8 anos para instituições públicas, mas isso era raramente praticado. A maioria dos senhores preferiu manter a tutela dos libertos até os 21 anos.”, ela diz.

O aspecto da lei que tange ao pecúlio, por sua vez, golpeou as bases do poder senhorial, de acordo com a historiadora, visto que obrigou o proprietário de escravizados a aceitar o pagamento da alforria. Assim, homens e mulheres escravizados passam a mobilizar as leis, recorrendo às chamadas “ações de liberdade” na justiça.

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Apesar disso, a situação das mulheres cativas tornou-se diversas vezes ambíguas. Telles traz o exemplo possível de uma mãe que teria tido um filho antes e depois de 1871. Nesse caso, ela provavelmente faria esforço para juntar dinheiro para comprar não apenas a sua alforria, mas também a de seu primogênito. “Teria uma luta constante, e muitas vezes inglória, por parte da família, dentro de relações de força muito desiguais”, ela afirma.

Lei dos Sexagenários (1885)

A lei de 1885 garantia que escravizados de 60 anos ou mais seriam libertos. Se vista sob a ótica contemporânea, nada chama atenção exatamente. Entretanto, uma informação adicional muda completamente a percepção sobre ela.

Idoso – Fonte: Fundação Cultural Palmares 

De acordo com a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, em Racismo brasileiro: uma história da formação do país, a expectativa de vida no Brasil daquele ano era de 27 anos para a população geral, e de apenas 21 anos para os escravizados. Isso significa que a Lei dos Sexagenários pouco impactou a escravidão naquele momento, uma vez que uma pessoa que vivia em condições insalubres e prestando incessantemente serviços forçados dificilmente alcançava os 60. Tendo-se em vista, ainda, que a Lei Áurea, que libertou os escravizados definitivamente, foi promulgada apenas 3 anos depois, foram poucos também aqueles que atingiram a idade mínima até 1888 e foram beneficiados por ela.

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A despeito do impacto pouco numeroso sobre a população, Telles notou em seu mestrado que a situação dos libertos idosos era muito dramática. Após a proibição do tráfico internacional de escravos (1850) e a Lei do Ventre Livre, sabia-se que era questão de tempo para a escravidão chegar ao fim no Brasil. Não havia mais meio algum de renovar a oferta deste tipo de mão de obra. Sendo assim, pode-se dizer que a nova lei quase não abalou os senhores, que se viram até aliviados em deixar de oferecer tutela aos idosos, já pouco produtivos. Nesse caso em especial, a rede de apoio dessas pessoas que foram abandonadas foi fundamental para a sua sobrevivência.

O fim definitivo

A Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, é a que finalmente coloca um ponto final na escravidão legal, que custou a acabar no Brasil. O país foi o último país do Ocidente a abolir esse sistema e o fez de modo muito conservador, não muito diferente das outras leis aqui tratadas. Sem estabelecer um plano de inclusão da população que alcançou a liberdade, e sem oferecer a eles indenização após séculos de exploração de seus ancestrais e anos de escravização fora da lei, princesa Isabel, que é reverenciada por muitos até hoje, talvez não fosse tão “redentora” assim. 

Jorge Hamilton

Jorge Hamilton

Nascido e criado no Jardim São Luís, periferia de São Paulo, Jorge Hamilton é estudante de história na USP e educador, atuando tanto em sua área de formação, quanto como professor de inglês. Tem experiência com pesquisa em jornalismo e é amante da escrita.

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