Há dois meses a diarista Sheila Pereira recebeu em seu celular um vídeo onde populares espancavam dois assaltantes em uma padaria em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Aos gritos de “ladrão tem que morrer” pessoas chutavam, davam socos e cuspiam em dois jovens negros caídos no chão. Eles tinham acabado de assaltar o estabelecimento. Não estavam armados. Com a mão por baixo da camisa fingiam portar uma arma que não existia. Sheila recebe logo em seguida outra mensagem: “Olha o que fazemos com teu filho bandido”. Foi assim que a mãe de seis filhos, que recebe R$700 por mês fazendo faxina, descobriu que “seu menino” de 20 anos tinha sido preso mais uma vez.
Moradora de uma comunidade chefiada pelo tráfico, Sheila não tinha dinheiro para ir atrás de seu filho. Naquela semana não teve faxina. Bateu de porta em porta e conseguiu R$4 para ir até a delegacia. Naquele momento seu caçula entrava em mais uma estatística: ele tornava-se mais um dos 726,7 mil presos que integram o sistema carcerário no Brasil. O terceiro país com mais presos no mundo, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen ). O filho da faxineira de São Gonçalo também faz parte de outra estatística brasileira: 64% dos presos são negros.
Ainda de acordo com os dados do Infopen, a maioria da população carcerária do Brasil é formada por homens jovens, negros, solteiros, que não concluíram o ensino fundamental, foram condenados de quatro a oito anos de prisão e pararam na cadeia por casos de roubo e furto. O levantamento revela que 55% da população prisional é formada por jovens – considerados até 29 anos, segundo classificação do Estatuto da Juventude. Esse é exatamente o perfil do filho de Sheila e de tantos outros detentos brasileiros: “Não sei onde eu errei na criação dos meninos, sempre fui trabalhadora, catava comida na xepa da feira, fazia faxina, fazia tudo o que eu podia e os meus três meninos foram para o caminho errado. Eu não queria morar na favela, mas para onde eu iria sozinha com meus meninos? Eles não vão sair de lá melhor do que entraram”, lamenta a mãe que saiu de casa com as crianças após ser agredida pelo marido por mais de 20 anos.
Para o advogado, defensor dos Direitos Humanos e professor de pós-graduação da Faculdade Estácio de Sá, Marcos Kalil, o sistema prisional brasileiro é um reflexo de nossa sociedade: “Esse modelo de prisão é associado ao nosso sistema de produção e econômico. Nesse sentido, o sistema carcerário serve a esse sistema de produção e ideológico em que o corpo negro tem um lugar, e o sistema carcerário é uma das alternativas para eliminá-lo e afastá-lo da sociedade. No Brasil há um genocídio negro. A população negra não é somente a mais presa, mas é também a que mais morre e é assassinada pelo aparato de repressão estatal. A sociedade é racista, o estado é racista, e eu ouso dizer que não haverá na sociedade uma política carcerária que não seja racista”.
O filho mais velho de Sheila está preso há quatro anos por tráfico de drogas. Segundo a diarista, o jovem de 24 anos entrou para o crime após ver o pai atear fogo no colchão onde a mãe dormia. O primogênito da diarista entra para outra estatística: os crimes de tráfico correspondem a 28% das incidências penais pelas quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento.
“Existe no Brasil uma cultura punitivista que é histórica”
“O tráfico de drogas é claramente o tipo penal para prender essa população marginalizada, majoritariamente negra, envolvida com o varejo das drogas. A guerra as drogas no Brasil têm esse efeito imediato de acirramento dos combates, dos confrontos nas comunidades pobres, isso acontece em outros países da América latina também. Uma coisa está associada a outra. Ou seja, acreditar que é preciso reforçar o combate ao tráfico de drogas significa maior vulnerabilidade dos residentes das favelas. Isso é muito claro. O discurso de senso comum contra a criminalidade que é usado por muitos políticos, quando ele ganha poder, como está acontecendo agora, automaticamente os agentes de segurança se sentem mais autorizados para reforçar seus expedientes violentos de trato destas populações, o que acarreta o aumento dos conflitos, dos sofrimentos e não se resolve o problema.”, explica o advogado Marcos Kalil.
Sheila apagou o vídeo de seu celular, mas nunca mais esqueceu da cena do espancamento que seu filho sofreu: “Ele errou, tem que ir preso, mas não ser espancado. Ele está errado, mas é meu filho. Por que fizeram isso com ele?”, se pergunta a mãe. Segundo o advogado Marcos Kalil a sociedade acredita de maneira equivocada que devemos ‘pagar’ a violência com mais violência: “Existe no Brasil uma cultura punitivista que é histórica. A ideia do castigo, da violência é na verdade o oposto do mito do brasileiro cordial. As pessoas acreditam que somos pacíficos, mas essa é uma das tantas mentiras que fundaram nossa nação. Há a crença de que só uma resposta violenta é capaz de refrear um quadro de violência que as pessoas vivem. Você não pode vencer a criminalidade dentro dessa fantasia que os conservadores têm de que “não se vence o tráfico com rosas e livros”. Mas talvez seja por meio da revisão do pacto social, de mais educação e mais Direitos Humanos. Não são os Direitos Humanos que impedem que a criminalidade seja coibida, é a ausência de Direitos Humanos que impede que a gente viva em uma sociedade mais igual”.
Após quatro anos de prisão, o filho mais velho da diarista vai passar o Natal em casa com a mãe e a irmã mais nova. Ela, que aos 19 anos já cria três filhos, integra mais uma estatística: a de que a cada mil adolescentes brasileiras entre 15 e 19 anos, 68.4 ficaram grávidas e tiveram seus bebês, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.