Por Monique Prado
Trazer a memória a luta do povo negro que em plena a ditadura militar fundou o Movimento Negro Unificado tem nos feito refletir sobre como a nossa negritude é experimentada de dentro, isto é, sem intervenção do branco.
Resgatar a literatura de Beatriz Nascimento que constrói a sua teoria de maneira sensível e científica é justamente contrapor a cultura dominante sobre o negro, da maneira que Nascimento compreende que o seu corpo histórico e transatlântico é capaz de produzir narrativa que a história oficial não contou.
Enquanto pesquisadora, Nascimento foi atrás da oralidade e de documentos sobre o Quilombo onde pode observá-lo não só do ponto de vista histórico, mas também enquanto organização político-social ideológico capaz produzir uma outra ordem ao negro em diaspora, já que sequestrado do seu território, recusa ser brutalizado pelo branco colonizador.
Seja ao escutar os ensinamentos dos nossos mais velhos, seja no samba de quintal, na gira, no jongo, ou na feijoada, o negro rememora valores ancestrais tanto na sua experiência de bem viver quanto no desenvolvimento econômico e social quando, fugindo das armadilhas da violência, cria espaços seguros para existir.
Mesmo em guerra la fora, dentro do quilombo o negro se organiza em coletividade tomando consciencia de si e mantendo o equilíbrio, a fim de elevar a sua própria cultura sem depender do branco. Isso é intitulado por Beatriz Nascimento como “paz quilombola”.
Pensando essas concepções de um modo de vida afrocentrado que contraponha a colonialidade ainda viva na figura do Estado, trocamos a noção academicista de “decolonialidade” para adotar a “contra colonialidade”, como nos ensinou o mestre Nego Bispo. Assim, as confluências negras formam alianças para dar continuidade ao trabalho de resistência e pulsão de vida liderados pelos nossos mais velhos que não se bastaram ao campo acadêmico para produção de nossos afetos.
No tempo presente, a aspiração quilombista de trazer para perto o jeito negro de criar e expandir o nosso pacto de vida e romper com necropolítica em que o Estado escancara o seu modus operandi de matar o nosso povo negro, vimos a necessidade de consagrar o projeto “Caminhos ancestrais”.
Caminhos ancestrais é uma confraria afrodiaspórica pautada na corporalidade e na cultura preta que visa partilhar ideias, experimentações sensoriais, diálogos e memórias. O projeto honra a filosofia Sankofa rompendo com o tempo linear e o entendendo como espiralar, à medida que a ancestralidade preta é dada pela fala e a transmissão da memória é viva e pulsante. Caminhos ancestrais pretende mobilizar uma agenda que gira em torno da alimentação afrodiaspórica, arte, cultura e pesquisa preta por meio de uma abordagem afro-referenciada, circular e pretagógica.
O Quilombo é uma realização coletiva, portanto, tivemos o nosso primeiro encontro no último dia 26 de novembro na Casa Crespa, espaço criativo, colaborativo e afrocentrado, matrigestado por @manifestocrespo. Caminhos ancestrais se instala nesse território transatlântico de maneira esoiralar do tempo: olhamos para as ensinagens dos nossos mais velhos para nos guiarmos para seguirmos em frente com muita pesquisa, gastronomia, afetividade, performance, musicalidade, circularidade e criação de vínculos, em diálogo com os nossos mais velhos e mais novos, o que ilustra não utopias, mas a potencialidade e poder criativo de nosso povo que em Quilombo certamente é mais forte.
Sobre as pessoas idealizadoras:
Monique Prado é advogada e mestranda na USP, sendo pesquisadora sobre as afetividades
e o samba.
Lucas Abreu é Chef de Cozinha e pesquisador orgânico de alimentação com enfoque na
cultura afrodiasporica caipira
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