Brasil tem mais casais interraciais que os EUA: diferenças refletem histórias de segregação e miscigenação

casal interracial

Especialistas explicam como o passado de segregação e miscigenação molda essas diferenças entre casais interraciais no Brasil e nos EUA - Foto: Pexels

Os relacionamentos inter-raciais são significativamente mais comuns no Brasil do que nos Estados Unidos. Enquanto 70% das pessoas negras em casais interraciais no Brasil têm parceiros brancos, segundo pesquisa do Datafolha, nos EUA apenas 18% dos negros recém-casados estão em uniões interraciais, conforme dados do Pew Research Center. Essa disparidade não é aleatória: ela reflete as trajetórias históricas distintas dos dois países em relação ao racismo, à segregação e à forma como as identidades raciais foram construídas socialmente.

No Brasil, 47% da população afirma já ter se casado ou morado com uma pessoa de cor de pele diferente da sua. Entre os pretos, esse índice salta para 70% com parceiros brancos. Entre os brancos, 33% relataram relações com pessoas pretas. Já os pardos tiveram, em sua maioria (64%), relacionamentos com pessoas brancas. Os dados são de um levantamento nacional realizado pelo Instituto Datafolha com 2.005 pessoas, entre os dias 17 e 19 de outubro de 2023, em 111 municípios.

A mesma pesquisa mostrou que 24% dos entrevistados disseram que seus últimos relacionamentos foram exclusivamente interraciais. Ainda assim, 19% dos pretos afirmaram que a cor da pele já interferiu em uma relação amorosa, número que revela a presença de tensões raciais mesmo em contextos íntimos.

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Especialistas explicam como o passado de segregação e miscigenação molda essas diferenças entre casais interraciais no Brasil e nos EUA – Foto: Pexels

Segregação legal nos EUA, miscigenação silenciosa no Brasil

Nos Estados Unidos, o casamento inter-racial foi formalmente proibido em diversos estados até 1967, quando a Suprema Corte derrubou essas restrições no caso Loving v. Virginia. Até hoje, muitos estudiosos apontam que os efeitos sociais da segregação legalizada — as Leis de Jim Crow — continuam influenciando os padrões de relacionamento e as fronteiras raciais.

Já no Brasil, apesar de não ter havido leis explícitas de separação racial após a abolição da escravidão em 1888, práticas discriminatórias seguiram por vias informais e institucionais. O país construiu sua identidade nacional sobre o mito da democracia racial, que incentivou a miscigenação como símbolo de harmonia, mesmo enquanto mantinha profundas desigualdades raciais no acesso a direitos e oportunidades.

Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, essa suposta fluidez racial brasileira mascara uma estrutura racial rígida e excludente. “A ideia de que o Brasil é um país miscigenado e, por isso, menos racista, é um discurso que impede o enfrentamento real da desigualdade racial”, afirma. Ele também aponta que a classificação racial brasileira é marcada por graduações de cor, o que contrasta com a lógica binária dos Estados Unidos baseada na “regra de uma gota”, em que qualquer ascendência negra define a identidade racial como negra.

A socióloga France Winddance Twine, autora do livro Racism in a Racial Democracy: The Maintenance of White Supremacy in Brazil, mostra como o racismo no Brasil se manifesta de maneira cotidiana e sutil, inclusive nas relações afetivas. Segundo ela, há uma reprodução de hierarquias raciais nos relacionamentos interraciais, principalmente quando envolvem homens brancos e mulheres negras, relações que, muitas vezes, carregam desequilíbrios de poder relacionados à classe, à cor e ao gênero.

Nos Estados Unidos, pesquisas como as do Pew Research Center indicam que o aumento das uniões interraciais está fortemente ligado à juventude, à urbanização e à escolaridade. Mesmo com o crescimento, a resistência social e familiar ainda é relatada por muitos casais, especialmente quando envolve mulheres brancas e homens negros, combinação que continua a ser mais estigmatizada do que outras.

No Brasil, o dado de que 91% da população afirma que a cor da pele nunca interferiu em seus relacionamentos pode indicar uma percepção de normalidade nas relações inter-raciais. No entanto, como alerta Twine, isso nem sempre significa ausência de racismo: o preconceito pode se manifestar na forma como a família reage, nos círculos sociais, ou até mesmo nas expectativas de aparência dos filhos.

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Mais casais interraciais, mas não mais igualdade

Embora os dados indiquem que o Brasil apresenta mais casais interraciais do que os EUA, especialistas alertam que isso não deve ser interpretado como superação do racismo. A presença dessas relações pode, muitas vezes, coexistir com padrões de embranquecimento simbólico, desigualdade de poder ou até apagamento identitário.

Esses padrões também se refletem no consumo, na mídia e na política: quanto mais clara for a pele de uma pessoa negra, maior tende a ser sua aceitação nos espaços sociais. A naturalização das uniões interraciais no Brasil não elimina o fato de que a população negra ainda é a mais afetada por desigualdades em praticamente todos os indicadores sociais , da educação ao mercado de trabalho.

A comparação entre Brasil e Estados Unidos em termos de relacionamentos interraciais revela mais do que diferenças numéricas: ela expõe como a história, a legislação e as ideologias raciais moldam até mesmo as relações mais íntimas. No Brasil, a maior incidência de casais interraciais parece resultado de uma convivência mais naturalizada entre grupos raciais, mas que não prescinde de tensões, desequilíbrios e heranças históricas ainda não resolvidas.

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