por Ricardo Corrêa
especialista em Educação Superior
Nos anos 70, em pleno regime militar, os compositores Aldir Blanc e João Bosco escreveram a canção “O Mestre-Sala dos Mares” homenageando o marinheiro João Cândido, mais conhecido como Almirante Negro. Uma atitude deveras ousada, diga-se de passagem. Naquele período a liberdade de expressão sofria forte censura e a brutal violência do regime não dava trégua para a população. No caso da população negra havia um agravante: o racismo instrumentalizado servia para o silenciamento, apagamento e subalternização do grupo. Mesmo assim, os compositores ignoraram a atmosfera de repressão e insistiram em homenagear o marinheiro negro. A inspiração surgiu por causa do ato de bravura de João Cândido, em décadas passadas, que objetivou a abolição das violências físicas como práticas de punição na Marinha do Brasil. Para a liberação da composição, os censores colocaram obstáculos sob a alegação de que a palavra “negro” estava recorrente nos versos. Aldir Blanc contou sobre a ida por diversas vezes ao departamento de Censura para tratar do assunto, e ficou estarrecido com a situação “Eu havia sido atropelado, não pelas piadinhas tipo tiziu, pudim de asfalto etc, mas pelo panzer do racismo nazi-ideológico oficial”. Mas o racismo opera com algumas nuances, as práticas racistas carregam mais conteúdo subjetivo do que a manifestação aparente. Nesse sentido, o principal incômodo era a valorização do homem que, além de negro, enfrentou a hierarquia da instituição militar. O argumento sobre a recorrência da palavra era apenas uma falseta. Ainda assim, os compositores fizeram algumas alterações a começar pelo título: no lugar de “Almirante Negro”, colocaram “O Mestre-Sala dos Mares”. Depois de idas e vindas, a música foi liberada e eternizada na voz da cantora Elis Regina.
Chibatadas, nunca mais! João Cândido Felisberto nasceu em 24 de junho de 1880, na Encruzilhada do Sul – RS, em uma fazenda onde seus pais eram escravos, mas a sua condição estava enquadrada a Lei do Ventre. A luta bateu à porta aos 13 anos de idade, participou na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, esteve no Arsenal de Guerra do Exército, e na Marinha do Brasil por onde permaneceu por 15 anos. Durante este período conheceu o mar como ninguém: viajou para vários países, desenvolveu habilidades, participou de algumas batalhas, ascendeu na hierarquia da instituição, mas também foi rebaixado.
Na época, os marinheiros tinham como punições: prisão à ferro na solitária, pão e água como alimento, ou recebiam dezenas de chibatadas. Cada modelo de punição dependia da falta cometida. Foi neste contexto que surgiu João Cândido, liderando uma luta, pertencente ao direito humano, na qual não seria tolerável a continuidade de tamanha violência física. No dia 22 de novembro de 1910, mobilizou um pouco mais de 2.000 marinheiros, a maioria negros e pardos. Os rebelados tomaram os navios de guerra da Marinha e exigiram o fim das chibatadas, além disso, ameaçaram bombardear a capital do país, Rio de Janeiro, caso a reivindicação não fosse atendida.
A revolta nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus-tratos e a má alimentação e acabar definitivamente com a chibata na Marinha. E o caso era este. Nós, que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos ainda admitir que na Marinha brasileira o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem” (p.31).
O governo percebendo a gravidade iminente costurou acordo com os rebelados, e garantiu a anistia aos envolvidos, mas articulou forças para reverter à situação que estava colocada. Houve o descumprimento do acordado e os envolvidos foram presos. Esse episódio entrou para os anais da história como a Revolta da Chibata. João Cândido foi expulso da instituição, e, mergulhado na pobreza, passou o restante da vida sob olhares de um sistema que o considerava subversivo. Aos 89 anos de idade, vitimado por um câncer, faleceu no dia 06 de dezembro de 1969.
Viva o Almirante Negro do Brasil!!!