No último dia 21 ocorreu mais uma edição do Encontro Alcance – evento anual organizado pela Fundação Lemann para compartilhar experiências e proporcionar conexão entre pessoas negras e
indígenas que já passaram por universidades no exterior e aqueles que almejam a mesma experiência e se preparam para suas candidaturas. O evento teve formato híbrido, com transmissão ao vivo no canal do YouTube da instituição, e presencialmente ocorreu no Doca1, em Salvador, na Bahia, com o tema “Ampliando Narrativas, Conectando Histórias”.
A escolha do local foi feita por conta da importância histórica de Salvador enquanto a cidade mais negra do Brasil e por ser referência quando se trata de preservação da cultura afro-brasileira. O evento faz parte de um conjunto de iniciativas da organização com o objetivo de aumentar o número de pessoas negras e indígenas estudando em universidades de excelência fora do Brasil.
Na apresentação institucional do Alcance, a vice-presidente de Equidade Racial da Fundação Lemann e coordenadora de diversidade da faculdade de Direito da FGV em São Paulo, Alessandra Benedito, afirmou acreditar que “o impacto de uma educação de excelência reflete diretamente em maior desenvolvimento social e econômico, com ações reais para promoção e contribuição para a justiça racial”. Alessandra completou sua fala explicando que ninguém chega em espaço nenhum de “mala vazia”, por isso, enfatizou:
“Que vocês tenham a oportunidade de chegar aos espaços dessas universidades no exterior com as malas cheias das vivências que tiveram ao longo da existência e da história de cada um. Que o conteúdo que vocês carregam e essas histórias reverberem em outras histórias, possibilitando que mais pessoas negras possam chegar lá, mas que possam voltar e impactar também na transformação do nosso país”, disse.
O evento foi mediado pela analista de política e âncora da CNN Brasil Basília Rodrigues. “Cada um dos beneficiados de uma bolsa de estudos como essa, para ter uma educação de qualidade em uma das melhores universidades do mundo, tem a oportunidade de ser um multiplicador de conhecimentos. É como se uma bolsa de estudos pudesse impactar diversas pessoas. É um universo que se abre para esse bolsista”, afirmou antes dos painéis.
O primeiro bate-papo do dia – “Nossos Passos Vêm de Longe” – convidou três pessoas negras que estudaram fora do Brasil com apoio de bolsas de estudo: João Victor Freitas, bolsista Fundação Lemann no mestrado em direito na Universidade Harvard; Deborah Rufino, bolsista Fundação Lemann em Educação na Universidade de Stanford; e Daniel Medina, bolsista Chevening no mestrado em Saúde Pública e Global pelo Imperial College de Londres.
Eles compartilharam com o público suas trajetórias profissionais e experiências enquanto pós-graduandos. A mediação foi de Raquel Helen Silva, gerente do Brasil on Campus na Fundação Lemann, que concluiu o mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, com bolsa integral. O Programa Brasil on Campus reúne uma comunidade de brasileiros estudando em
universidades no exterior unidos pelo propósito de serem comprometidos com a mudança social no Brasil.
“Você enquanto pessoa negra ou indígena tem o direito de ter essa oportunidade e possibilidade de pensar na sua carreira, no profissional que deseja se tornar e ter a melhor formação possível”, afirmou João Victor, abordando em sua fala que a curiosidade que sempre teve sobre o mundo o levou a estudar fora. Ele também comentou sobre o entendimento que teve de como é ser um homem negro brasileiro
nos Estados Unidos.
“Quando você vai para fora, é uma nova transformação. Eu brinco que foi meu segundo chá revelação, foi o ‘você é um homem negro latino-americano’, e isso tem uma série de outros desafios e uma forma diferente de se inserir naquela comunidade. Toda vez que você transita para um ambiente novo, e nós, pessoas negras, estamos sempre fazendo isso a partir do momento em que investimos em nossa educação ou começamos a ter desenvolvimento profissional, vem uma reflexão nova sobre sua condição, um eterno tensionamento entre a singularidade da sua experiência e a universalidade com que você está dialogando”, explicou.
Deborah relembrou o processo de abandonar sua bolsa ProUni no Brasil para buscar sua graduação e mestrado no exterior, do apoio de sua família e o questionamento sobre raça que morar num país com pouco miscigenação como os EUA trouxe a ela. “Estudar fora me permitiu olhar com uma certa distância para a experiência de ser negra no Brasil e me colocar da forma que eu queria ser”, afirmou.
Daniel Medina contou sobre o que o levou a pesquisar sistemas de saúde fora do país e entender como esse tratamento difere em populações subservidas. Contou que costuma ser o único médico negro nas unidades em que frequenta e citou os obstáculos que pessoas negras enfrentam ao buscar uma educação fora do país, como a fluência em outra língua e a chamada “síndrome do impostor”.
“Nos é ensinado que precisamos ser os pretos e pretas que se destacam, e aí chegamos nesses lugares e sofremos de isolamento. Essa experiência me fez pensar em como não ser o ‘preto único’, em como
fazer essa experiência retornar para o nosso povo, como tornar isso acessível para a nossa população”, comentou.
O segundo bate-papo – “E mais longe podemos ir” – trouxe uma pessoa negra já no auge de sua carreira e com uma extensa experiência em pós-graduações fora do país. Mediada por Basília Rodrigues, a conversa foi com o professor Adilson José Moreira, da FGV Direito SP, especialista em Direito Antidiscriminatório, doutor pela Universidade de Harvard e pós-doutor pela Universidade de Berkeley. Ele começou lembrando de sua trajetória como estudante de direito na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), quando quis estudar a intersecção entre direitos e justiça racial, o que o levou a mergulhar no tema ao longo de sua especialização internacional. Também falou sobre desejar ser um agente de transformação social e sobre a liberdade intelectual oferecida pela Universidade de Harvard.
“Dá para haver dezenas de autores e autoras negras capazes de desenvolver trabalhos de altíssima qualidade”, disse em resposta a uma pergunta sobre mais negros em faculdades de ponta no exterior. “É lutar para entrar nesse espaço e buscar o aquilombamento. É importante criar redes de conexão e proteção coletiva”, explicou.
Durante o evento, a divulgação das inscrições para o Chevening, que já estão abertas e vão até o dia 15 de novembro, foi reforçada para os participantes. O programa é uma iniciativa do governo do Reino Unido financiada pelo FCDO (Foreign and Commonwealth Office) que oferece bolsa e apoio financeiro para um ano de mestrado em universidades de excelência do Reino Unido.
Leia também: Escola estadual de SP está no top 3 em concurso que escolhe a ‘Melhor Escola do Mundo’