O envelhecimento para a população brasileira, em especial para as pessoas negras, é um processo que sofre o impacto do racismo, refletindo na qualidade de vida na velhice. Esse processo difere para a comunidade negra e abrange aspectos sociais que vão definir a qualidade de vida nessa etapa de suas vivências.
Segundo o relatório “Envelhecimento e Desigualdades Raciais”, realizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em parceria com o Itaú Viver Mais, o Brasil é um lugar inseguro para pessoas negras envelhecerem. O que é corroborado pelo médico geriatra Thyago André Mendes.
Em entrevista ao NP, o geriatra destacou que historicamente, a população negra sempre enfrentou desigualdades no que se refere aos cuidados de saúde, incluindo diagnósticos tardios, tratamentos inadequados, além do menor acesso aos serviços de saúde de qualidade.
A quantidade de idosos negros que vivem em situação de rua, em situações de abandono, ou em condições precárias de moradia é outro dado apontado pelo geriatra. Segundo Thyago, a falta de moradia adequada e de apoio social são fatores que contribuem para uma deterioração ainda maior da qualidade de vida durante o envelhecimento, aumentando significativamente o risco de doenças físicas e mentais, e dificultando o acesso aos cuidados de saúde.
“Essa marginalização reflete no envelhecimento, onde muitos idosos negros enfrentam barreiras adicionais para acessar cuidados médicos adequados e gerenciamento de condições de saúde crônicas”, destaca.
Exemplo vivo
Para Maria Oliveira, de 75 anos, o racismo contribuiu para a falta de oportunidades ao longo de sua vida. “Eu não tenho estudo, não consegui me formar, trabalhei desde novinha, com 10 anos já ajudava o meu pai na roça. Quando ele me botou para estudar, eu aprendi um pouquinho, né? Não aprendi muita coisa. Isso foi em 66 e eu só estudei o segundo ano daquele estudo velho. Tinha muita vontade de aprender, mas eu aprendi só um pouquinho porque eu tinha que trabalhar na roça”, disse Oliveira em entrevista ao Notícia Preta.
Maria ressalta que não teve acesso à saúde básica, que não possui plano de saúde e que nunca teve oportunidade de ter acesso a alguma atividade de lazer. “Eu trabalhava desde novinha com o meu pai e quando casei continuei trabalhando. Eu gostava de trabalhar na roça, plantava e capinava. Foi o trabalho que tive. Esse tempo era difícil, não era fácil”, informou. Ela destaca que não alcançou uma instabilidade financeira, mas que consegue arcar com suas despesas diárias.
“Eu sou viúva há 13 anos, às vezes me sinto solitária, também sinto muita falta do meu marido. Eu imagino muito minha vida, as coisas que passei, as coisas do tempo. Já me acostumei a ficar sozinha, é o jeito! Estou mais triste, mas fico mais feliz quando me reúno com os meus filhos, todos os sábados vejo eles”, acrescentou.
Segundo o relatório sobre Envelhecimento e Desigualdades Raciais, nota-se que a população negra idosa apresenta uma baixa escolaridade, menores salários, falta de serviços básicos e altos percentuais de mortalidade. Esses fatores sociais evidenciam a insegurança alimentar, trabalho precário, mobilidade limitada, comprometimento da saúde mental e acesso reduzido a serviços culturais.
Além disso, ainda de acordo com o relatório, as desigualdades raciais se iniciam na infância e se perpetuam ao longo de toda a vida. No entanto, quando a população negra chega à etapa da velhice, essas disparidades assumem contornos distintos e singulares no que diz respeito à vulnerabilidade.
“Outro aspecto importante é a estrutura familiar. Muitos idosos negros enfrentam a ausência de um sistema de apoio familiar robusto devido a fatores como migração, separação e fragmentação familiar. Isso pode deixá-los mais vulneráveis e dependentes de serviços sociais e de saúde”, relata.
O médico ainda menciona que são necessárias instituições de longa permanência para idosos do serviço público, em especial projetada para atender às necessidades específicas da população negra idosa. Aliás, essas instituições precisam ser equipadas para fornecer cuidados de saúde culturalmente sensíveis, apoios sociais e estruturações adequadas para fornecer um espaço seguro e acolhedor para os idosos negros mais vulneráveis.
Principais doenças que atingem a população negra
De acordo com André, as principais doenças que atingem a população negras são:
- As doenças cardiovasculares, como hipertensão arterial, doença coronariana e insuficiência cardíaca, são uma das principais causas de morbidade e mortalidade entre os idosos negros.
- Problemas de próstata: entre os homens idosos negros, é comum enfrentar problemas de próstata, incluindo hiperplasia prostática benigna (HPB) e câncer de próstata.
- Já em relação às mulheres pretas, é maior a prevalência de câncer de colo de útero, pelo menor acesso ao exame papanicolau (preventivo, citologia oncótica).
Para o especialista, essa população pode enfrentar desafios adicionais devido à má assistência à saúde ao longo de suas vidas, o que pode acarretar uma maior prevalência de doenças infecciosas e parasitárias, além de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), em decorrência de fatores como falta de acesso a cuidados preventivos e educação em saúde.
Medidas para contornar as desigualdades no processo de envelhecimento da população negra
O geriatra ressaltou a necessidade de dar ênfase nas políticas públicas voltadas para mitigar as desigualdades sociais. “Programas que visam combater a discriminação racial, promover a igualdade de oportunidades de educação e emprego e garantir o acesso equitativo à moradia adequada e segura. A implementação de políticas que reduzam as disparidades econômicas entre grupos étnicos também é fundamental para melhorar o bem-estar da população negra idosa”, informou o médico.
Para ele, é importante investir em políticas de saúde pública e priorizar a atenção primária no que diz respeito aos cuidados hospitalares terciários, ou seja, “direcionar recursos para serviços de saúde preventivos e comunitários, como clínicas de saúde da família, centros de atenção primária e programas de promoção da saúde”, informou o profissional.
O médico menciona que, por meio dessas abordagens, será mais eficaz o processo de prevenção de doenças crônicas, além de gerenciar as condições de saúde em estágio inicial e também proporcionar estilos de vida saudáveis, “especialmente em comunidades historicamente marginalizadas”.
A pesquisa conduzida pelo Cebrap com a colaboração do Itaú Viver Mais utilizou os dados coletados pela pesquisa “Impactos sociais do envelhecimento ativo”, realizada em 2021. Para a coleta de informações, foram disponibilizados questionários direcionados a pessoas com 50 anos ou mais nas cidades de Salvador, São Paulo e Porto Alegre.
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