Por Eden Pereira Lopes da Silva- Professor de História (UERJ), Mestre em História Comparada (UFRJ), Doutorando também em História Comparada (UFRJ)
Em maio de 1938, logo após apoiar as intenções nazistas de invadir e ocupar a Tchecoslováquia em Munique, o Primeiro-Ministro britânico Neville Chamberlain disse aos jornalistas de forma orgulhosa que tinha garantido a ’’Paz do Nosso Tempo’’. Desde então, esta frase significa a conivência com a fascistização da Europa em troca de uma paz a todo custo. Uma ação vergonhosa e injustificável na época, que posteriormente foi criticada, mas que aparece em diversos momentos da história.
Falar de paz em um sentido idealista, como ocorre na maioria das vezes quando o caso da ocupação de Israel na Palestina é citado, significa resgatar a ’’Paz do Nosso Tempo’’. Essa ação hipócrita, que reaparece a cada ação de autodefesa e resistência palestina, que pode também ser chamada de defesa da ’’Paz dos Cemitérios’’, é uma vergonha para a comunidade internacional, pois a guerra não pode ser tratada como um problema particular. A guerra é a encarnação mais violenta das lutas políticas, pois é pela política que começam e terminam os conflitos militares. Neste caso específico, o conflito de Israel contra os palestinos começou quando os Estados Unidos e a Grã-Bretanha decidiram há sete décadas, com base em seus interesses estratégicos para o Sudoeste da Ásia (Oriente Médio), que ali deveria existir um Estado judaico, mesmo que isso significasse a invasão e a expulsão da população palestina.
Ninguém, exceto os membros do complexo industrial/tecnológico/militar e das companhias mercenárias, é a favor da guerra. Mais do que um fim, o conflito militar é uma expressão histórica de contradições políticas, sociais e ideológicas. A guerra na Palestina eclodiu há sete décadas atrás e ainda não foi encerrada, nem mesmo desescalada por uma escolha política. As sucessivas tentativas de acordos em 1967, Camp David no ano de 1978 e Oslo em 1993, fracassaram fragorosamente porque Israel nunca aceitou a existência do Estado da Palestina, e o que se buscou na prática foi prometer a paz em troca do desarmamento da resistência a invasão e extermínio dos palestinos.
O mundo, preocupado com a possibilidade de que uma escalada militar na região pudesse gerar prejuízos econômicos e políticos globais- as maiores reservas de petróleo estão logo ali ao lado -, ignorou o caráter violento e agressor do Estado de Israel para tentar preservar a ’’Paz dos Cemitérios’’. Entretanto, as forças ideológicas sionistas, que dirigem o governo israelita, jamais deixaram de prosseguir com o seu projeto de invasão, agressão e expulsão dos palestinos, bem como o seu ’’sonho geopolítico’’ de edificar a ’’Grande Israel’’, que abrangeria tudo desde o Rio Nilo, no Egito, até o Eufrates, no Iraque.
Sozinhos, abandonados e desamparados dentro e fora de suas próprias terras, os palestinos ficaram com poucas opções. A ’’Guerra ao Terror’’, que inagura o ’’American Way of War’’, foi o estímulo adicional necessário ao mais sangrento dos governos sionistas: Benjamin Netanyahu. Em duas décadas de governo, o atual Primeiro-Ministro israelense foi responsável pela criação do maior campo de concentração da história contemporânea no mais longo e duro bloqueio militar e econômico presente. Isso ocorreu concomitantemente a um violento avanço de assentamentos israelenses ilegais sobre terras internacionalmente reconhecidas como palestinas, onde colonos armados agem como cowbys, tratando o povo palestino dessas áreas como ’’índios’’ no velho oeste estadunidense do século XIX.
Nem mesmo os locais religiosos sagrados de muçulmanos e cristãos palestinos foram deixados de lado por esta política de expulsão e extermínio. A militarização de Jerusalém por meio dos bloqueios e da limitação da passagem de fiéis para frequentar igrejas e mesquitas também é uma dura parte dessa Paz hipócrita. A fé, que ironicamente é uma das coisas mais valorizadas pelo sentido de liberdade liberal dos ocidentais, é o que vem mais sendo atacado na Palestina desde a ’’Guerra ao Terror’’. As crenças de cristãos e muçulmanos palestinos não são uma ’’questão de performance’’, trata-se antes de uma marca de identidade, que hoje tornou-se crucial como barreira de defesa ao projeto expansionista e fascista de Israel.
A ação militar de autodefesa e resistência conduzida pelos grupos armados palestinos não tem relação alguma com terrorismo, ou mesmo com um conflito religioso. Estamos diante de uma reação política de um povo que sofre há sete décadas com o avanço do mesmo tipo de apartheid que existiu na África do Sul e nos Estados Unidos das leis Jim Crow de segregação racial. O lugar periférico, escondido, marginal e militarizado onde habitam os palestinos deixou de assustá-los, pois gerações sucessivas vivendo sobre o terror diário da morte, já não possuem mais medo do que pode vir. Apenas a comunidade internacional, por meio de uma fé hipócrita na ’’Paz do Nosso Tempo’’, acredita que este Estado de Israel como conhecemos é capaz de um dia aceitar a existência da Palestina de ’’bom grado’’.
Essa reação violenta, comum em locais de dura repressão como nas lutas de independência na África e na Ásia, foi um duro golpe sobre vários pontos que pareciam inabaláveis desde o aparecimento do Estado de Israel em 1948. Entretanto, os dois pontos mais importantes são a derrubada do mito da invencibilidade do aparato militar israelense perante os palestinos, e a implosão da política apaziguadora que fornecia as bases para a continuidade do projeto de extermínio dos palestinos e de expansão sionista.
Sobre o mito da invencibilidade do aparato militar israelense diante dos palestinos, não existem ainda muitas análise completas. Entretanto, com o tempo, veremos emergir importantes estudos sobre isso, pois com uma força e capacidade bem menores do que o Estado de Israel, pequenos grupos guerrilheiros foram capazes de expor um dos países mais bem armados, vigiados e militarizados do mundo. A operação de autodefesa e resistência, com o objetivo de arrefecer o bloqueio sob a Faixa de Gaza e paralisar os projetos de assentamentos nas áreas palestinas, está sendo bem sucedida em termos militares e midiáticos, pois pode inviabilizar qualquer grande ofensiva de Israel em curto e médio prazo. Além do mais, a atual operação, que é restrita a Faixa de Gaza, é um grande incentivo para que no futuro a população palestina na Cisjordânia também busque organizar-se para uma resistência e autodefesa perante o expansionismo sionista.
Um segundo, e muito importante ponto, é a implosão da política apaziguadora que é conivente com o expansionismo sionista. A ’’Paz do Nosso Tempo’’ é inviável e mostrou os limites com a reação palestina, que mostra não apenas que é falsa a ideia de que Israel aceitará pacificamente um Estado Palestino, mas que a resistência militar é a opção que restou. Os Acordos de Oslo chegaram ao seu trigésimo aniversário sem serem cumpridos, assim como a cada rodada de bombardeio de Israel sobre Gaza, ou agressão a fiéis palestinos em locais religiosos em Jerusalém, nada acontece. A Autoridade Palestina, isolada e com uma popularidade cada vez mais baixa, perdeu o seu sentido de ser porque pela diplomacia não foi possível avançar. Nos momentos mais graves das últimas décadas, a União Europeia e os Estados Unidos, ficaram ao lado de Israel ou mantiveram uma neutralidade, desmoralizando Mahmoud Abbas, que hoje busca apoio na China e na Rússia para a construção de um Estado Palestino. Com o início da Operação Tormenta Al-Aqsa, o líder da Autoridade Palestina, em um movimento diferente de anos anteriores, não condenou as ações militares guerrilheiras e assumiu a defesa de Gaza, mesmo perante as ameaças de cortes na ajuda humanitária aos palestinos. Essa posição é uma ruptura histórica que aponta na direção da formação de uma unidade política palestina completamente inédita, e que rechaça essa hipócrita ’’Paz do Nosso Tempo’’. Uma ’’linha vermelha’’ contra o expansionismo sionista foi estabelecida com a clara delimitação de que só haverá paz quando os palestinos conseguirem ter o direito a soberania sobre as suas terras, a vida e a dignidade.
Existe uma saída para essa situação? Apenas a edificação de um Estado livre e soberano para os palestinos que siga os acordos de 1967. Acolher este direito de soberania e autodeterminação dos palestinos é a única saída para o início da pacificação desta guerra de ocupação. A hipócrita, e implodida, ’’Paz dos Cemitérios’’, chegou ao fim, e é preciso que o último regime de apartheid e de supremacia racial no mundo também acabe.
*Eden Pereira Lopes da Silva também é pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre África, Ásia e Relações Sul-Sul e Colunista da Revista Intertelas
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